Fernando Reinach-estadão Conteúdo - 28/12/2019 - 18:45:07
O homem não passa de um animal recoberto por uma casca de civilidade. Nos últimos dez anos, me parece que essa casca começou a rachar. Pelas trincas, o passado está invadindo o presente e nos transformando no que sempre fomos. Por baixo da casca, somos um símio agressivo, temeroso dos fenômenos naturais e focado unicamente no futuro próximo.
Comer e reproduzir foram as únicas atividades que garantiram nossa existência por milhões de anos. Recentemente, há menos de um milhão de anos, o desenvolvimento do cérebro e da mente que ele produz fez com que descobríssemos nossa mortalidade, algo novo no reino animal. A descoberta adicionou o medo de morrer à fome e ao desejo sexual e talvez seja o motivo para criarmos o que chamo de casca civilizatória.
Criar e aperfeiçoar a casca vem do fato de sermos também o único ser com dois modos de transmitir informações entre gerações. Animais têm só a capacidade de transmitir sua informação genética por meio de espermatozoides e óvulos. Para eles, o progresso depende do lento processo da seleção natural . O que aprendem durante a vida se perde com a morte, pois só os genes sobrevivem na próxima geração.
Alguns animais são capazes de aprender com os pais: pássaros aprendem a cantar e carnívoros, a caçar. Mas isso não chega aos pés do que aprendemos na infância, lendo, vendo aulas, fotos e filmes. Nossos filhotes, além de receberem nossos genes, passam anos absorvendo parte da enorme quantidade de informação que acumulamos em milhares de anos. É por esse processo de aquisição de conhecimento que cada um de nós é recoberto por sua própria casca e nossa espécie leva adiante o que chamamos de civilização.
Os benefícios da casca civilizatória são enormes e cresceram ao longo dos séculos. No início, os aprendizados eram estocados na memória de uma geração e repassada à próxima nas conversas ao pé do fogo. Como lascar a pedra para fazer uma lança, cercar a presa, construir um abrigo, voltar ao local onde frutas podem ser colhidas.
Mais tarde, foram as informações sobre como cultivar plantas, domesticar animais e praticar o comércio. Com o advento da escrita, a quantidade de informação que pôde ser acumulada para consulta futura aumentou exponencialmente e ainda não parou de aumentar, passando pelas bibliotecas e chegando à memória dos computadores.
Fenômenos naturais que nos apavoravam começaram a ser compreendidos e, em vez de rezar por chuva, irrigamos lavouras. Roupas e outros utensílios permitiram que nos espalhássemos pelo planeta. Leis e acordos sociais contiveram a violência do individualismo e permitiram que colaborássemos. Surgiram as primeiras civilizações.
A preservação da casca e seu desenvolvimento nortearam a humanidade nos últimos séculos. O ensino passou a ser obrigatório e se espalhou pelos países e classes sociais. O aperfeiçoamento das regras de convivência, formas de governança das nações e mecanismos para garantir a paz se tornaram metas da humanidade, mesmo quando abandonadas temporariamente. O conhecimento científico se tornou indispensável, pois, aos poucos, se transformou em tecnologia – da eletricidade às ondas eletromagnéticas, passando pela metalurgia, máquina a vapor, medicina, carro, bomba atômica e internet.
Grande parte da humanidade lamenta o fato de muitas pessoas não terem a possibilidade de desenvolver sua casca individual e inveja países em que isso ocorre.
No Brasil era assim. Nos últimos dez anos, em muitos locais do planeta, mas principalmente no Brasil, me parece que essa casca está rachando. Políticos não só se vangloriam de não serem educados, como percebem que vivem um enorme conflito de interesse: se incentivarem a educação, a ciência e a cultura, põem em risco os votos que conquistaram com discursos populistas e simples mentiras.
Corrupção e mecanismos para defender sua manutenção e impunidade seriam insustentáveis se a educação tivesse fortalecido a casca da população. Rachaduras na casca civilizatória tornaram aceitáveis a difusão de mentiras, a agressividade nas redes sociais, a religiosidade dogmática, o desprezo pela ciência ( terraplanismo e negacionismo climático ) e pelo planeta onde vivemos. A medicina vai sendo solapada (movimento antivacina e homeopatia) e as instituições de ensino e pesquisa são aos poucos destruídas.
Combinadas, essas mudanças permitem surgir por baixo da casca nossa natureza animal: agressiva, temerosa de deuses imaginários, suscetível a líderes fanáticos, propensa à violência irracional e preocupada unicamente com o curto prazo. São mudanças difíceis de reverter, pois têm a seu favor a natureza selvagem do animal que ainda somos. Só espero que meu pessimismo passe com o ano novo.
*FERNANDO REINACH É BIÓLOGO
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