24 mudanças trazidas pelo coronavírus que devem sobreviver à pandemia

“No futuro, nós vamos falar de ‘a.c.’ (antes do coronavírus) e ‘d.c.’ (depois do coronavírus)”

24 mudanças trazidas pelo coronavírus que devem sobreviver à pandemia
24 mudanças trazidas pelo coronavírus que devem sobreviver à pandemia

Estadão Conteúdo - 02/01/2021 09:56:02 | Foto: Pixabay

Com as praias cheias, a reabertura de bares e restaurantes, o retorno às aulas e a retomada da economia, a impressão que se tem é de que a vida está, enfim, voltando ao normal. Oito meses depois da adoção das primeiras medidas de isolamento social, em meados de março, parece que, num piscar de olhos, a pandemia ficará para trás – e tudo voltará a ser como antes.

Mas, apesar do clima de relativa normalidade que se observa nas ruas, o coronavírus ainda está por aí, levando centenas de vidas e infectando milhares de pessoas por dia pelo Brasil afora – e não há indícios de que irá desaparecer com a mesma velocidade com que se disseminou.

O repique no número de casos graves da doença no País e o surgimento de uma segunda onda de contágio na Europa mostram que não dá para relaxar na luta contra o vírus, ainda que sejamos considerados “u m país de maricas” pelo presidente Jair Bolsonaro.

Mesmo quando a pandemia passar – espera-se que seja logo– ou quando houver a descoberta de uma vacina que funcione e esteja disponível para aplicação em massa, é improvável que haja um retorno ao mundo em que a gente vivia antes da covid-19 .

“No futuro, nós vamos falar de ‘a.c.’ (antes do coronavírus) e ‘d.c.’ (depois do coronavírus)”

Jeffrey Cole, pesquisador na Universidade do Sul da Califórnia e diretor do Centro para o Futuro Digital

Não haverá retorno à normalidade”, diz Enrique Dans, professor de Inovação na IE Business School, em Madrid, em artigo publicado recentemente na revista Forbes. “No futuro, nós vamos falar de ‘a.c.’ (antes do coronavírus) e ‘d.c.’, (depois do coronavírus)”, afirma Jeffrey Cole, pesquisador na Universidade do Sul da Califórnia e diretor do Centro para o Futuro Digital, nos Estados Unidos, que realizou um estudo sobre o impacto da pandemia na vida da população, em parceria com o Bureau Interativo de Publicidade (IAB, na sigla em inglês).

Em poucos meses, a pandemia introduziu ou acelerou profundas transformações na nossa vida pessoal, profissional e social. Provocou uma revolução na rotina das empresas e um estrago colossal nas contas públicas. Várias dessas mudanças deverão sobreviver ao vírus e moldar o nosso futuro, em maior ou menor grau, por mais um tempo ou para sempre, para o bem ou para o mal.

“O coronavírus funcionou como um anabolizante para a mudança”, diz o economista e consultor Gabriel Pinto, autor do livro Passaporte para o Futuro (Edições Cândido, 2020), que aborda a metamorfose que está acontecendo no mundo do trabalho.“Muito do que vamos viver daqui para a frente será um aprofundamento do que estamos vivendo hoje”, afirma o economista Daniel Susskind, professor da Universidade Oxford, na Inglaterra, e autor dos livros O futuro das profissões e O mundo sem trabalho, publicados em português pelas editoras Gradiva e Porto, de Portugal.

Para ajudá-lo a navegar neste “novo normal”, o Estadão traz uma reportagem especial que aborda as transformações turbinadas pela pandemia e o que elas podem significar para a sua vida, para os negócios e para o País. Do juro baixo à “desglobalização”, do home office e do comércio eletrônico às lives e à mudança do “dress code” de trabalho, o especial dá um mergulho em 24 mudanças que desafiam a nossa capacidade de adaptação a cada dia, agrupadas em cinco grandes temas: economia, trabalho, consumo, cotidiano e lazer e entretenimento.


Diante da magnitude das mudanças, é até natural
que haja certa ansiedade com o que acontecerá nos próximos meses e anos


O especial traz também seis entrevistas exclusivas, com um time de craques em suas áreas de atuação, que aprofundam a discussão sobre o impacto das diferentes mudanças provocadas ou aceleradas pela pandemia. São eles o economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central (BC); Tony Volpon, ex-diretor da Área Internacional do BC; Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor-executivo do Iedi (Instituto de Estudo de Desenvolvimento Empresarial); Fernando Gambôa, sócio da KPMG no Brasil e responsável pela área de consumo e varejo; Adriano Marcandali, diretor para a América Latina do Workplace, plataforma de trabalho digital ligada ao Facebook; e Fernando Pedro, diretor médico da Amil, uma das principais empresas de seguro-saúde do País.

“Algumas das mudanças a que fomos ‘apresentados’ ou que se intensificaram durante a pandemia, como as mudanças tecnológicas, vieram para ficar. Outras, como as que ocorreram nos setores de aviação, hotelaria e turismo, deverão permanecer por mais dois ou três anos e vão passar. Agora, há atividades, como as de entretenimento e construção de escritórios e de instalações de empresas e bancos, que vão levar um tempo para se reacomodar e nunca mais voltarão a ser o que eram”, diz Gomes de Almeida.

Muita gente ainda não se deu conta do momento que estamos vivendo e resiste às mudanças, tentando manter hábitos e posturas do pré-pandemia. Diante da magnitude das transformações que estão em curso, é até natural que isso aconteça e haja certa ansiedade no ar com o que poderá ocorrer nos próximos meses e anos. “Sem preparação ou permissão, nós estamos participando da maior experiência de ciência social de todos os tempos”, afirma Jeffrey Cole.

Para enfrentar a nova era, é preciso ter flexibilidade e estar aberto à inovação. “O mundo mudou aos nossos olhos em poucos meses – e, quando o mundo muda e você insiste em fazer as coisas como antes, não vai acabar bem”, diz Enrique Dans. Cabe a cada um de nós encarar o desafio que se coloca à nossa frente, para não “perder o bonde” quando a pandemia passar.

As medidas de isolamento social adotadas aqui e lá fora, para tentar conter a propagação do coronavírus, tiveram um impacto brutal na economia, provocando mudanças relevantes no cenário pré-pandemia ou reforçando tendências que já estavam em curso.

A seguir, você poderá conferir as principais transformações que ocorreram na economia neste período e que deverão se manter nos próximos meses ou anos, e os efeitos que elas terão na sua vida financeira, nos negócios e no País. A lista inclui os juros baixos, o dólar alto, o reforço na poupança para imprevistos, a repaginação do “ coronavoucher ”, a explosão da dívida pública e a “desglobalização”.

Durante a pandemia, a queda dos juros – que já vinha ocorrendo desde o governo Temer e ganhou tração na atual gestão – acentuou-se. Para tentar alavancar a atividade econômica e tirar o País da profunda recessão registrada nos primeiros meses da covid, o Banco Central (BC) cortou a taxa básica (Selic) para 2% ao ano, o menor patamar da série histórica, no qual se mantém até hoje, e não há perspectiva de elevação significativa no horizonte.

Diante do retrospecto do País neste campo, como tradicional campeão mundial dos juros altos, é difícil acreditar que a bonança possa durar muito tempo. Até analistas respeitados no mercado questionam a capacidade de o BC manter as taxas no nível atual. Mas, segundo economistas de diferentes correntes de pensamento ouvidos pelo Estadão, a tendência é de os juros continuarem muito baixos, seguindo um movimento internacional, por pelo menos mais um ano ou até um pouco mais, ainda que venham a sofrer uma ligeira alta até lá.

Com a inflação na faixa de 3% ao ano, isso quer dizer que as taxas reais continuarão negativas e que o investimento em aplicações de renda fixa, como os CDBs, os fundos e a poupança, não cobrirá sequer a perda do valor de compra da moeda. Por outro lado, para os tomadores de crédito e para quem está no vermelho, incluindo o próprio governo, que fechará o ano com um rombo de quase R$ 1 trilhão, a manutenção dos juros baixos deverá representar um alívio mais que bem-vindo em suas contas.

“Os juros no próximo ano serão muito maiores do que neste ano? Não”, diz Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro, que deixou o cargo em julho para se tornar sócio e economista-chefe do banco BTG Pactual, a partir de janeiro. “Eu acredito que isso é duradouro, sim, e esta percepção vem se fortalecendo. Não é a minha opinião, é o que os mercados estão dizendo”, afirma Gustavo Franco, sócio da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central (BC). “Com a economia em recessão e o desemprego alto, os juros deverão continuar baixos por um tempo estendido”, diz Tony Volpon, ex-economista-chefe do banco suíço UBS no Brasil e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central (leia as entrevistas completas de Volpon e Franco).

A definição do movimento dos juros – se o patamar atual vai se manter por um prazo mais longo ou se será um fenômeno efêmero, que durará só mais alguns meses – dependerá de vários fatores. O primeiro é o ritmo da retomada da economia. Se a recuperação vier de forma acelerada e não houver novas intempéries pelo caminho, os juros deverão começar a subir de forma lenta e gradual, de acordo com Volpon, em direção ao nível pré-pandemia, de 4,5% ao ano, mas ainda bem abaixo da média praticada historicamente no Brasil.

O segundo fator que poderá provocar uma elevação das taxas é um repique da inflação. Mas, apesar da ligeira alta ocorrida nos últimos meses, puxada pelo aumento do preço do arroz e de outros alimentos, a expectativa dos analistas é de uma inflação de 3,2% para 2020 e 2021, ambas bem abaixo da meta anual, de 4%, segundo os dados mais recentes do boletim Focus, que reúne as estimativas dos bancos para os principais indicadores econômicos.

“Para o cenário de juros baixos não ser algo de dois ou três anos, mas de uma década, teremos de fazer um esforço de ajuste fiscal”

Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro Nacional

Outro ponto que deverá nortear o comportamento dos juros é a questão fiscal. Se o teto de gastos for preservado e a equipe econômica conseguir manter as contas públicas sob controle, resistindo ao ímpeto gastador de alguns políticos, de ministros e até do presidente Jair Bolsonaro, o BC terá uma margem de manobra maior para manter o atual nível das taxas.

“Para consolidar o cenário de juros baixos e isso não ser algo de dois ou três anos, mas de mais de uma década, teremos de fazer um esforço de ajuste fiscal”, afirma Mansueto Almeida. “Ainda bem que a gente está vendo como é bom viver com Selic de 2% ao ano”, diz Gustavo Franco. “Isso de fato tem ajudado lá em Brasília. Quando a turma ameaça os políticos dizendo que ‘vai subir o juro tudo de novo’, o pessoal fica com medo.”

Se as taxas se mantiverem no patamar atual por um prazo mais longo, haverá uma guinada radical no cenário macroeconômico do País. “Já há algum tempo tenho opinado que essa queda de juros parece com a estabilização da economia, inclusive no aspecto cultural”, afirma Franco, que fez parte da equipe que desenvolveu e implantou o Plano Real. “Sua relevância só é inferior ao fim da hiperinflação, mas ela é parecida nos efeitos.”

“A relevância da queda dos juros só é inferior ao fim da hiperinflação, mas é parecida nos efeitos”

Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central

No novo cenário, a “ciranda financeira” ou o “rentismo”, como preferem alguns, perde atratividade, como já está acontecendo, e o investimento na produção e em ativos reais, como imóveis e máquinas, ganha força. “A taxa de juros é uma espécie de medida da distância entre o presente e o futuro, que se aplica em tudo na vida: na poupança, no investimento, na construção, nos preços dos ativos, no tamanho da Bolsa, no câmbio. Tudo tem juro no meio”, diz Franco. “Com o juro caindo como caiu, tudo que é preço de ativo muda para melhor. O futuro fica mais perto e invertem-se algumas lógicas habituais do mundo empresarial.”

Se tal cenário se confirmar, por mais improvável que possa parecer para gerações de brasileiros que se acostumaram a viver com os juros na estratosfera, o Brasil poderá ingressar no clube dos países com taxas civilizadas e contar com um estímulo poderoso para o desenvolvimento.

Durante a crise, o dólar deu um salto. Depois de roçar os R$ 6, em meados de maio, a moeda americana recuou, em meio a solavancos pontuais, para a faixa de R$ 5,5, mas ainda registra uma valorização de 36% no ano, até 13 de novembro, e de 9,3% desde 20 de março, quando o Ministério da Saúde declarou o estado de transmissão comunitária do coronavírus. Entre as 30 moedas mais negociadas no mundo, o real ainda acumula a maior desvalorização, puxada pela retirada maciça de capitais do País e pela redução dos aportes externos na produção.

De janeiro a outubro, de acordo com o Banco Central (BC), o fluxo cambial ficou negativo em US$ 20 bilhões, puxando o dólar para cima. No canal financeiro, que reúne os investimentos estrangeiros diretos e em carteira, remessas de lucro e pagamento de juros, a saída de recursos superou o ingresso em R$ 52,7 bilhões, um resultado compensado apenas em parte pelo saldo registrado na balança comercial, de US$ 32,7 bilhões.

Embora as turbulências políticas e a política ambiental do País sejam muitas vezes apontadas como responsáveis pela fuga dos estrangeiros e pela elevação do dólar no período, dois outros fatores teriam levado à debandada dos investidores externos e à escalada da moeda americana frente ao real, segundo economistas de diferentes tendências ouvidos pelo Estadão: a queda substancial dos juros locais, para o patamar inédito de 2% ao ano, e as incertezas geradas pela pandemia em relação ao desempenho da economia global.

“O nosso movimento nos juros foi fundamental para dar ao câmbio um feitio que ele deveria ter desde quando você quiser”, diz Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor-executivo do Instituto de Estudos do Desenvolvimento Industrial (Iedi) e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. “Vinha muito capital de fora em função disso, valorizando a nossa moeda, e a redução dos juros acabou com aquele ganho fácil da arbitragem cambial.”

“No mundo todo, houve uma aversão ao risco que se refletiu numa fuga de capitais, principalmente de economias emergentes”

Carlos Langoni, diretor do Centro de Economia Mundial da FGV

Para o economista Carlos Langoni, ex-presidente do BC e diretor do Centro de Economia Mundial, ligado à Fundação Getúlio Vargas (FGV), a saída dos estrangeiros e a alta do dólar se devem também ao “choque global” provocado pela coronavírus. “O que houve foi um tsunami que começou na China e foi chegando ao Brasil”, afirma. “No mundo todo, houve uma aversão ao risco que se refletiu numa fuga de capitais, principalmente de economias emergentes.”

Independentemente da discussão sobre o que teria provocado a alta do dólar, o pior parece já ter passado. Apesar do soluço registrado no final de outubro, em decorrência dos temores de investidores internacionais em relação aos efeitos que uma nova onda de contágio na Europa pode ter na economia mundial, as estimativas para os próximos meses e para 2021 continuam positivas.

De acordo com o Boletim Focus, produzido pelo BC, que reúne as estimativas dos bancos, a previsão divulgada em 6 de novembro é de que a moeda americana feche 2020 em R$ 5,45, praticamente estável em relação à cotação atual, e em R$ 5,2 em 2021, 7,1% abaixo do valor corrente.

Na avaliação do economista Gustavo Franco, sócio da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do BC, houve “uma espécie de overshooting” do dólar e “o normal” agora seria a cotação recuar mais um pouco. “Houve muita criação de liquidez nos Estados Unidos e isso vai para a extremidade do sistema, vai chegar aqui.”

Segundo ele, a perda de atratividade da renda fixa para os investidores externos deverá ser compensada, em alguma medida, pelo ingresso de moeda forte para a compra de ativos no País, que ficaram bem mais baratos com a cotação atual do dólar. “Estamos num período de transição. Com esse juro e com o dólar onde está, é outra equação”, diz. “Acredito que a conta de investimento direto vai continuar muito positiva, mas a conta financeira, que governa o dólar, está meio indefinida.”

“Nós temos uma indústria viciada em subsídio, em tarifa de importação, em Zona Franca”

Tony Volpon, ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central

A combinação de juros baixos e dólar alto deverá favorecer o setor produtivo, especialmente a indústria, que perdeu competitividade na arena global nas últimas décadas. As exportações serão beneficiadas, apesar da retração do comércio global, e as importações ficarão mais caras. “Em mantendo essas condições, a indústria vai ser outra”, afirma o economista Júlio Sérgio Gomes de Almeida (leia aqui a entrevista completa de Gomes de Almeida).

Para Tony Volpon, ex-economista-chefe do banco UBS no Brasil e ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC, porém, as mudanças ocorridas no câmbio e nos juros não serão suficientes para a indústria reconquistar o espaço perdido na economia do País e no mercado global. Para se recuperar, em sua visão, o setor terá de passar por uma profunda “transformação cultural”.

“Nós temos uma indústria viciada em subsídio, em tarifa de importação, em Zona Franca”, afirma. “Se a gente conseguir abrir a economia, manter uma taxa de câmbio relativamente competitiva, ter um ambiente de negócios amigável e estimular o aumento de produtividade nas empresas, não há razão para não conseguir reverter a decadência industrial do País, que vem desde os anos 1990.”

A questão, como sempre, é que a indústria brasileira resiste fortemente ao “desmame”. O lobby da “boquinha”, destinado a preservar as benesses obtidas no passado, está rolando a céu aberto em Brasília e se infiltrando no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios e no Congresso. “O lobby do setor automobilístico está aí desde Juscelino Kubistchek. Ninguém tira a proteção deles. São 50 anos de proteção”, diz Volpon. “O que a gente tem de fazer é criar um mecanismo para realizar algum tipo de avaliação de custo/benefício dos programas, inclusive do ponto de vista fiscal.” Agora, como diz o velho dito popular, “só falta combinar com os russos”.

Em meio às incertezas trazidas pela pandemia e ao desemprego recorde registrado no País, muita gente decidiu engordar a sua poupança. Até por conta da quarentena e do fechamento das lojas, o consumo perdeu força, apesar da recuperação registrada nos últimos meses, com o fim das medidas de isolamento social.

De janeiro a outubro, segundo o Banco Central, a captação líquida (depósitos menos saques) da caderneta de poupança, ainda a aplicação mais popular no País, chegou a R$ 144,2 bilhões, mesmo com o rendimento – de cerca de 1,6% ao ano – ficando abaixo da inflação, estimada em cerca de 3% em 2020. O resultado alcançado pela poupança durante a pandemia, turbinado pela transferência de bilhões de reais em recursos públicos para a população, por meio do pagamento do Auxílio Emergencial e pela antecipação do 13º dos aposentados, entre outras iniciativas do gênero, foi recorde para o período desde o início da série histórica, em 1995.

Com a reabertura do comércio e a retomada gradual da economia, alguns analistas esperavam que a disposição de poupar fosse diminuir sensivelmente. Mas, em outubro, último dado disponível, os depósitos voltaram a superar os saques, pelo oitavo mês seguido, com captação líquida de R$ 7 bilhões.

A percepção, ainda assim, continua a ser de que o nível robusto de captação da caderneta é um fenômeno temporário, que deverá se manter só por mais alguns meses – inclusive por causa dos juros baixos, que desestimulam as aplicações de renda fixa, como a poupança –, e não um sinal de que a crise transformou o Brasil numa nação de poupadores.

“Uma parte dos poupadores continuará a poupar mais do que no pré-pandemia, mas menos do que no auge da crise”

Ademir Corrêa Júnior, diretor de Investimentos do Bradesco

“É uma poupança circunstancial, muito por conta da redução de gastos das famílias durante o isolamento social e de uma ingestão bilionária de recursos pelo governo com o Auxílio Emergencial”, diz Ademir Corrêa Júnior, diretor de Investimentos do Bradesco. “Essa poupança, concentrada na faixa de renda mais baixa, não espelha um comportamento que vai perdurar.”

De acordo com o próprio Corrêa Júnior, porém, uma parcela dos poupadores deverá continuar a poupar mais do que antes, embora menos do que no auge da crise. Para ele, a pandemia pode ter provocado uma mudança no comportamento do consumidor, levando-o a questionar se precisa consumir tanto quanto antes e comprar tudo o que comprava. Isso poderá se refletir nos depósitos da poupança e de outras modalidades de investimento, que também tiveram aumento de captação no período. “Surgiu uma consciência diferente na pandemia”, diz Corrêa Júnior.


4‘Coronavoucher’ repaginado

Criado no início da pandemia para atender os trabalhadores informais, os desempregados e as famílias de baixa renda, incluindo os beneficiários do Bolsa Família, o Auxílio Emergencial, também conhecido como “coronavoucher”, tem data marcada para acabar.

Em dezembro, será paga a última parcela do benefício, que foi fundamental para amenizar os efeitos da crise no País. Segundo dados oficiais, o programa – que incluiu cinco parcelas de R$ 600 de abril a agosto e mais quatro de R$ 300 a partir de setembro – atendeu perto de 65 milhões de famílias, já contando as 14,3 milhões do Bolsa Família. No total, até o fim do ano, o programa deverá consumir cerca de R$ 320 bilhões – o maior volume de recursos destinado pelo governo para o combate à pandemia e a seus efeitos sócio-econômicos.

É provável, porém, que o Auxílio Emergencial seja mantido sob nova configuração a partir de 2021, com o nome de Renda Cidadã, ainda que apenas para a parcela dos mais vulneráveis que receberam o benefício neste ano. Embora o governo ainda esteja buscando recursos para financiar o programa, a decisão política de implementá-lo parece já estar tomada. Com o pagamento do benefício, a popularidade do presidente Jair Bolsonaro, que vinha em queda livre, deu um salto em todo o País, especialmente no Norte e Nordeste, e ele não quer perder o apoio que conquistou, considerado fundamental para alavancar sua eventual tentativa de reeleição em 2022.

A ideia é que o Renda Cidadã funcione como uma espécie de Bolsa Família ampliado, para atender de 20 a 25 milhões de famílias, incluindo de 6 a 10 milhões que ficariam sem qualquer benefício com o fim do Auxílio Emergencial, a partir de janeiro. Pelas propostas iniciais, o valor do Renda Cidadã seria de R$ 300 por mês, inclusive para os atuais beneficiários do Bolsa Família, que recebiam, em média, R$ 193 mensais, de acordo com dados do governo, antes de serem incluídos no Auxílio Emergencial.

A questão é que, para aumentar o valor atual do benefício do Bolsa Família em cerca de 50% e ainda incorporar o contingente de vulneráveis que estava fora do programa e recebeu o coronavoucher, seriam necessários de R$ 20 bilhões a R$ 30 bilhões a mais por ano – e os recursos não estão previstos na proposta orçamentária de 2021, enviada pelo governo ao Congresso.

Para tentar viabilizar o programa, apareceram sugestões de todos os tipos. Já se falou até em furar o teto de gastos, considerado essencial para manter as contas públicas sob controle, e em usar o dinheiro de precatórios e do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).

Alguns parlamentares vieram a público defender, sem constrangimento, o prolongamento da medida que liberou os gastos do governo para o combate à pandemia ou do próprio Auxílio Emergencial, por mais três meses, em 2021. Outros propuseram a redução do valor do benefício para R$ 200 em 2021 e a sua elevação para R$ 250 em 2022 e R$ 300 em 2023.

“O governo Bolsonaro tem dificuldade de aceitar os trade offs. Na hora de fazer escolhas, trava”

Creomar de Souza, CEO diretor da consultoria Dharma Political Risk & Strategy

De seu lado, a equipe econômica chegou a propor o fim do abono salarial, do seguro defeso, do salário-família, do Farmácia Popular e até da correção anual das aposentadorias e do salário mínimo pela inflação. Mas as propostas foram rechaçadas por Bolsonaro. “Não vai tirar do pobre para dar ao paupérrimo”, afirmou o presidente.

Parece difícil para Bolsonaro entender que não dá para fazer tudo ao mesmo tempo com os recursos disponíveis e dentro das regras do jogo. “O governo Bolsonaro tem dificuldade de aceitar os trade offs. Na hora de fazer escolhas, o governo trava”, diz o analista político Creomar de Souza, CEO da consultoria Dharma Political Risk & Strategy. “A percepção de Bolsonaro é que ele tem de ganhar em todos os cenários o tempo todo, e isso não é possível.”

De um jeito ou de outro, o novo programa entrou no radar, para não deixar uma parcela considerável da população de menor renda sem assistência após o fim do coronavoucher e para atender aos interesses políticos de Bolsonaro, de alguns de ministros e de seus apoiadores no Congresso. Mesmo que a medida não seja implementada de imediato, mais cedo ou mais tarde ela deverá se tornar realidade, ampliando o “colchão” social oferecido no País aos mais pobres.


5Contas públicas no vermelho

A trajetória de contenção dos gastos públicos, implementada pela equipe econômica no primeiro ano do governo Bolsonaro, foi interrompida bruscamente em 2020, para fazer frente às demandas de saúde e de caráter econômico e social trazidas pela pandemia.

Com a dinheirama que jorrou dos cofres do governo durante a crise, autorizada pelo Congresso por meio do chamado “orçamento de guerra”, o rombo nas contas públicas se multiplicou. Segundo as previsões dos economistas, o estrago deixado pela pandemia deverá moldar o futuro do País por no mínimo mais uma década, reduzindo os recursos disponíveis, que já são escassos, para investimentos e ações sociais.

Em 2020, de acordo com as estimativas mais recentes do Ministério da Economia, o déficit primário, que exclui o pagamento dos juros para rolagem da dívida pública, deverá ficar em quase R$ 900 bilhões, um valor equivalente a cerca de 12% do PIB (Produto Interno Bruto), um recorde histórico. Incluindo os gastos com juros da dívida, que deverão consumir em torno de R$ 300 bilhões, equivalentes a 4% do PIB, o déficit nominal chegará a cerca de R$ 1,2 trilhão, ou 16% do PIB, outra marca inédita.

Com esse resultado, a dívida líquida do setor público, que exclui o setor financeiro e o Banco Central, deverá fechar o ano em 67,5% do PIB, um salto de 8,1 pontos percentuais em relação ao índice de 2019. Já a dívida bruta do governo central, que havia caído 0,7 ponto do PIB no ano passado, para 75,8% do PIB, deverá chegar a cerca de 100% do PIB no fim de 2020, alcançando quase R$ 7 trilhões.

Um estudo realizado pela Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, aponta que a dívida bruta, que deveria parar de crescer neste ano ou no próximo, segundo as previsões feitas antes da pandemia, agora deverá seguir em alta até 2030, quando chegará a 117,6% do PIB, e só então começará a cair. “Se antes da crise a gente já tinha o desafio de ajustar as contas públicas e já era difícil fazer isso, depois da pandemia vai ficar ainda mais complicado, porque a União, os Estados e os municípios estarão numa situação fiscal ainda pior do que antes”, diz o economista Felipe Salto, diretor executivo da IFI.

Para evitar solavancos nos mercados, a equipe econômica tem dito que os gastos relacionados à pandemia ficarão restritos a 2020 e que, em 2021, o País retomará a política de ajuste fiscal praticada antes da crise. O Ministério da Economia também tem procurado reforçar o compromisso com a manutenção do teto dos gastos, que limita o crescimento das despesas públicas ao nível do ano anterior, corrigido pela inflação.


O ímpeto gastador de alguns políticos pode prevalecer, deixando o País numa situação fiscal insustentável


O problema é que a pressão para aumentar as despesas e “furar” o teto é grande, apesar de o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, também ter reforçado seu compromisso com a estabilidade fiscal. O próprio presidente Jair Bolsonaro, apesar de dizer publicamente que vai respeitar o teto, “põe pilha” nas propostas que preveem a ampliação de gastos, de olho em sua provável tentativa de reeleição em 2022.

“Não tem muita margem para erro neste cenário”, afirma Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro, que deixou o cargo em julho para se tornar sócio e economista-chefe do banco BTG Pactual, a partir de janeiro. “Se chegar a um ponto de os investidores não confiarem no governo, o prêmio de risco para colocar os títulos públicos no mercado vai ser muito alto, o juro vai subir muito e a coisa poderá ficar muito séria.”

No momento, em meio às discussões travadas no governo e no Congresso sobre o tema, é difícil cravar por quem os sinos vão dobrar. Ainda que a racionalidade econômica aponte para a necessidade de retomar o ajuste iniciado no pré-pandemia,o ímpeto gastador de alguns políticos pode prevalecer, deixando o País numa situação fiscal insustentável. O que se pode dizer desde já é que o estrago deixado nas contas públicas pela pandemia deverá continuar no centro do debate econômico do País por muito tempo, assim como no resto do mundo.

Com a desaceleração da economia mundial durante a pandemia, os negócios entre os países deverão fechar o ano com uma queda significativa. De acordo com estimativas da Organização Mundial do Comércio (OMC), as exportações globais em 2020 deverão ter uma redução que ficará entre 12,8%, no cenário otimista, e 32%, no cenário pessimista, em relação ao mesmo período do ano passado.

Mesmo que haja uma retomada da economia mundial em 2021, dificilmente o comércio internacional voltará ao patamar do pré-pandemia. A tendência é que o retorno ao nível de 2019 se dê de forma gradual, como já aconteceu em outras crises.

Para alguns analistas, porém, o efeito da pandemia na economia global vai muito além do fluxo de comércio. Segundo eles, no auge da crise, a falta de produtos como respiradores e máscaras, fabricados em grande parte pela China, reforçou o questionamento em relação ao papel desempenhado pelas cadeias internacionais de valor nas últimas décadas. Isso levará, de acordo com tal percepção, a um aumento nos índices de nacionalização ou regionalização da produção nos próximos anos – um fenômeno chamado no jargão dos economistas de “reconversão industrial”.

“O mundo pós-pandemia não vai ser o mesmo em relação à globalização”, afirma Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor executivo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) e ex-secretário de Política Econômica do antigo Ministério da Fazenda. “Isso não significa que vamos voltar aos tempos pré-globalização. Mas o mundo em que a gente vivia, presidido pelos princípios do menor custo e do menor prazo de entrega, passará por uma reformulação. A questão estratégica agora vai fazer parte do jogo.”


A pandemia reforçou a visão de que os interesses nacionais devem se sobrepor aos princípios de racionalidade econômica


De certa forma, nos últimos anos, essa guinada já vinha ocorrendo, com o acirramento da disputa geopolítica entre Estados Unidos e China. Mas a pandemia acabou alavancando, para o bem ou para o mal, a visão de que os interesses nacionais devem se sobrepor aos princípios de racionalidade econômica. “Essa ‘desglobalização’ permite que certas cadeias de produção possam voltar a países como o Brasil”, diz Tony Volpon, economista-chefe do banco suíço UBS no País e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central (BC).

No momento, ainda é difícil dizer com segurança se a “desglobalização” será um fenômeno de curta duração ou se representará uma mudança estrutural, que irá se aprofundar daqui para a frente.Em crises como a provocada pela pandemia, sempre surgem previsões sobre uma possível marcha-à-ré na globalização. Isso aconteceu também na crise financeira global, em 2008, mas, como se constatou depois, as previsões não se confirmaram e a globalização retomou o seu vigor. Nada garante, portanto, que agora não acontecerá a mesma coisa.

“No começo da pandemia, teve muito essa profecia de ‘desglobalização’ e de aumento da presença do Estado na economia, mas hoje, sete meses depois, acredito que é preciso revisar essas projeções”, afirma o economista Gustavo Franco, sócio da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do BC. “Se a gente olhar para 2021, não sei se será verdade que haverá um Estado maior e menos comércio exterior. O panorama ficou mais confuso. O impacto da pandemia é muito mais complexo do que parecia à primeira vista.”

Talvez esta crise seja diferente das outras. Talvez, o mundo, hoje, seja distinto do que era em 2008, moldado por líderes como o presidente americano, Donald Trump, derrotado pelo democrata Joe Biden nas eleições realizadas no início de novembro, e por outras autoridades populistas pelo mundo afora, que enxergam na globalização uma ameaça aos interesses nacionais. Mas, por ora, o certo é que o cenário atual, de menor fluxo comercial, deverá se manter, de uma forma ou de outra, ao menos por mais algum tempo.

No auge da crise, durante o período de quarentena, a nossa forma de trabalhar passou por profundas mudanças, impulsionadas pelo uso intensivo da tecnologia. Muitas dessas mudanças deverão se manter, em maior ou menor grau, e vão moldar o mundo do trabalho no pós-pandemia.

O home office, as reuniões virtuais e os webinars se tornaram uma realidade para milhões de profissionais e para as empresas, enquanto as viagens de trabalho, especialmente as de longa distância, os eventos presenciais e os contatos pessoais, fundamentais para o desenvolvimento de networking, perderam espaço. Até o “dress code” de trabalho se alterou sensivelmente, com o uso de roupas e acessórios mais casuais, e é difícil imaginar que volte ao que era antes quando a crise passar.

Em decorrência do trabalho remoto, milhões de metros quadrados de escritórios nas principais cidades do País ficaram vazios, levando empresas de todos os portes a estudar a venda ou a devolução dos imóveis que ocupavam – um movimento que deverá se intensificar nos próximos meses e anos.

Impulsionados pelo desemprego recorde e pela transformação das relações de trabalho, que já estava em curso e acelerou-se durante a crise, milhões de brasileiros decidiram se reinventar e criar o próprio negócio, em vez de buscar um emprego com carteira assinada. Na nova era, o empreendedorismo deverá desempenhar um papel ainda mais relevante do que desempenhou até hoje.


7Conversão ao empreendedorismo

Com a transformação das relações de trabalho, impulsionada pela flexibilização da legislação trabalhista e pela crescente digitalização das empresas, que já estava em andamento antes da crise, muitos profissionais vinham trilhando o caminho do empreendedorismo para se adaptar aos novos tempos e garantir o seu sustento e o de suas famílias. Com a pandemia e a recessão brutal que a acompanhou, levando ao corte de milhões de empregos, essa tendência se acentuou de forma expressiva.

Segundo o Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), foram criados 1,47 milhão de MEIs (Microempreendedores Individuais) de janeiro a setembro de 2020 – um recorde desde o surgimento da categoria em meados de 2009 –, o que representa 13,8% a mais do que no mesmo período do ano passado. Além disso, foram criadas cerca de 700 mil micro e pequenas empresas, um aumento de pouco mais de 10% no ano sobre o total existente no fim de 2019. Em São Paulo, de acordo com a Junta Comercial do Estado, houve o registro de 22.825 novos CNPJs só em agosto, a maior marca mensal desde 1998.

É certo que, com a crise, um número significativo de MEIs e pequenas empresas fechou as portas, embora o Sebrae não divulgue os dados relativos à mortalidade dos negócios de menor porte. O Ministério da Economia também não discrimina o fechamento de empresas por tamanho. Mas, de acordo com dados da pasta, 682,8 mil empreendimentos de todos os portes encerraram as atividades nos primeiros oito meses do ano. É um número considerável, do qual boa parte deve ser de MEIs, mas é 54% menor do que o total de empresas abertas no País até o fim de agosto.

"O desemprego está levando as pessoas a se tornarem empreendedoras. Não por vocação genuína, mas pela necessidade de sobrevivência", afirma o presidente do Sebrae Nacional, Carlos Melles, ex-deputado federal pelo DEM. “Boa parte dos trabalhadores com carteira assinada que ficaram desempregados neste ano não voltará a ter emprego e está virando trabalhador independente”, diz o economista José Roberto Afonso, professor do Instituto de Direito Público (IDP) e pesquisador na Universidade de Lisboa. “O empregador não quer mais contratar com carteira assinada e o trabalhador não vai ficar esperando surgir uma vaga”.

“Não tem coisa melhor do que ser dono do seu tempo e poder fazer em 12 horas duas ou três atividades diferentes”

Carlos Melles, presidente do Sebrae

Apesar de os sindicatos ainda defenderem uma legislação trabalhista mais rígida, um número crescente de trabalhadores parece preferir a liberdade de trabalhar por conta própria e dá de ombros para a CLT (Consolidação da Legislação do Trabalho), criada por Getúlio Vargas em 1943 e ainda em vigor. Uma pesquisa realizada recentemente pelo Ibope com mil entregadores do IFood, Uber, Eats e Rappi mostrou que 70% preferem o modelo de trabalho flexível oferecido pelos aplicativos de entrega e a possibilidade de escolher os horários de trabalho e de poder trabalhar com várias empresas do que ter carteira assinada, para receber benefícios como 13º salário, férias remuneradas e FGTS.

“A reforma trabalhista , a ampliação da terceirização, esses avanços têm contribuído para melhorar a percepção do brasileiro de que, na verdade, não tem coisa melhor do que ser empresário dele mesmo e ser dono do seu tempo, poder fazer em 12 horas duas ou três atividades diferentes”, afirma Melles. “A gente está apostando que o aumento da procura pelo trabalho independente, com liberdade, veio para ficar”.

É como afirmou Tim Draper, veterano investidor do Vale do Silício, em entrevista recente ao repórter Bruno Capelas, do Estadão: “Nunca houve uma época tão boa para ser empreendedor, especialmente num país pobre. Hoje, quase todo mundo tem smartphone e eles servem como janelas para o mundo. Tudo é possível a partir daí.”


8Incorporação do home office

Se houve uma mudança que entrou para valer na vida dos profissionais e das empresas durante a pandemia, essa mudança foi o home office. Embora já estivesse no radar e fosse adotado em alguma medida antes da crise, ainda havia muita desconfiança e resistência das empresas – e mesmo entre os trabalhadores – em relação ao sistema.

Mas, com a adoção das medidas de isolamento social e o fechamento compulsório dos escritórios, não houve alternativa. Da noite para o dia, as empresas tiveram de adotar o trabalho remoto, em maior ou menor grau, para continuar funcionando – e o resultado foi melhor do que se poderia imaginar.

Impulsionado pelo uso intensivo da tecnologia, que já estava disponível, mas era incorporada de forma mais lenta no dia a dia dos negócios, o home office mostrou a sua eficácia e deverá se manter na rotina de trabalho no pós-pandemia.

No pós-pandemia, deverá haver uma combinação de pessoas trabalhando de forma remota e nos escritóriosPixabay

Segundo várias pesquisas realizadas sobre o tema, ao menos um terço das empresas pretende manter, integral ou parcialmente, o trabalho remoto depois da crise. Ao mesmo tempo, de acordo com as pesquisas, a maioria dos trabalhadores deseja continuar a trabalhar exclusivamente em home office ou ir apenas ocasionalmente ao local de trabalho. Uma parcela dos empregados – cerca de 10% dos entrevistados – chega a afirmar que não aceitaria trabalhar numa empresa que não ofereça o home office como opção aos funcionários.

“Foi uma mudança forçada de hábitos e de comportamento. Ninguém estava preparado para isso. Mas o paradigma mudou”, diz o economista Gabriel Pinto, autor do livro Passaporte para o Futuro (Edições Cândido, 2020), que aborda a metamorfose que está acontecendo no mundo do trabalho com a digitalização e a robotização das atividades.


Para as empresas, o home office permitiu corte de custos com energia, comunicações, segurança, transporte e viagens


Além de ter funcionado bem durante a quarentena, o home office trouxe uma série de vantagens, ainda não dimensionadas com precisão, que deverão contribuir para alavancar a sua incorporação definitiva no dia a dia do trabalho.

Para as empresas, o sistema permitiu uma redução considerável de custos com energia elétrica, comunicações, segurança, transporte e viagens. Mostrou também que, provavelmente, elas não precisarão de tantos metros quadrados de escritórios no futuro e poderão reduzir o tamanho de suas sedes, cortando o gasto com aluguel ou a imobilização patrimonial.

Para os empregados, o trabalho remoto permitiu uma redução do número de horas perdidas no trânsito e dos gastos com transporte e alimentação, além de uma maior convivência com a família. Permitiu também o uso de roupas mais casuais e a redução de despesas com a compra de roupas sociais, que em geral são bem mais caras. Fora isso, ainda abriu a possibilidade de as pessoas mudarem das grandes cidades, para melhorar a qualidade de vida, sem ter de trocar de emprego.

“Muitos empresários viram que é possível fazer home office sem nenhuma perda para as empresas”

Júlio Sérgio Gomes de Almeida, economista e diretor executivo do Iedi

“O home office foi benéfico para todo mundo”, afirma Pinto. “Qual a diferença de trabalhar em casa, no sítio ou na praia, no Brasil ou na Alemanha?”, diz o economista Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor-executivo do Instituto de Estudos do Desenvolvimento Industrial (Iedi) e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. “Muitos empresários com os quais tive oportunidade de conversar viram que é possível fazer home office sem haver nenhuma perda para as empresas.”

O sucesso do home office na pandemia, porém, não significa que o sistema será usado por todos os trabalhadores e que vai continuar nos mesmos moldes nos próximos meses e anos. Com a flexibilização do isolamento social, o nível de trabalho remoto já caiu – e deverá cair ainda mais com o passar do tempo. Mas isso não significa também que vamos voltar à situação do pré-pandemia.

“O futuro do trabalho será híbrido, com algumas pessoas trabalhando nos escritórios e outras trabalhando remotamente. Vai haver também pessoas utilizando os dois modelos em diferentes dias da semana, trabalhando alguns dias no escritório e outros, em casa”, afirma Adriano Marcandali, diretor para a América Latina do Workplace, plataforma de digitalização das relações de trabalho do Facebook (leia a entrevista completa com Adriano Macandali). “Cada setor vai ter graus diferentes de trabalho remoto”, diz Monica Lee, diretora da Jones Lang LaSalle (JLL), empresa internacional de consultoria imobiliária na área comercial.“Dependendo do tipo de atividade, isso funciona melhor ou não tão bem. Mas em todas as empresas a gente nota que o trabalho remoto veio mesmo para ficar.”


Daqui para a frente, será preciso encontrar formas de ampliar a integração de quem trabalha remotamente


Em tese, segundo uma pesquisa recente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), ligado ao Ministério da Economia, cerca de 20 milhões de pessoas, o equivalente a um quinto da mão de obra, têm condições de trabalhar remotamente no País. Obviamente, tal contingente exclui os trabalhadores que atuam no “chão de fábrica”, centros de distribuição de mercadorias e no varejo, atendendo clientes nas lojas, um grupo que representa perto de 80% da força de trabalho.

Há um consenso entre os analistas de que os trabalhadores da área administrativa e da área de telemarketing estão mais habilitados, pela natureza de suas atividades, a trabalhar em home office. De acordo com Marcandali, as empresas que prestam serviços digitais também vão ter um índice mais alto de trabalho remoto, assim como os trabalhadores das áreas jurídica e financeira. Até o recrutamento de pessoal, em sua visão, poderá ser feito de forma remota, ampliando o acesso de candidatos que não vivem na mesma cidade em que se situam as sedes das empresas, hoje excluídos do processo, às vagas disponíveis.

“De nada adianta ter essas ferramentas incríveis se a gente não souber lidar com o ser humano”

Adriano Marcandali, diretor para a América Latina do Workplace

Agora, em meio a tantos pontos positivos, o home office trouxe também alguns desafios, que terão de ser enfrentados pelas empresas e pelos profissionais quando a poeira baixar. Como a mudança foi repentina, nem sempre houve tempo para lidar com as dificuldades. Será preciso, por exemplo, encontrar formas de ampliar a integração e a colaboração entre os funcionários e entre as equipes e seus líderes, que tendem a diminuir com o trabalho remoto, prejudicando a criatividade e a inovação, essenciais para o desenvolvimento profissional e dos negócios.

“Aquele cafezinho em que você encontrava um colega, aquela conversa no corredor com quem pouco você fala, agora não tem mais e isso acaba dificultando a integração”, afirma o economista Gabriel Pinto, autor do livro Passaporte para o Futuro (Edições Cândido, 2020). “No mundo virtual, você vai precisar de plataformas que potencializem a colaboração, a sinergia e a humanização que tínhamos no escritório, para não haver uma perda do outro lado”, afirma Marcandali. “De nada adianta ter essas ferramentas incríveis se a gente não souber lidar com o ser humano”, diz Marcandali. É uma preocupação que promete demandar uma atenção especial das empresas nos próximos meses e anos.

Durante décadas, os escritórios foram um símbolo de status para as empresas. Quanto maiores e mais luxuosos, modernos e bem localizados, mais eles demonstravam a força financeira e o poder de uma empresa. De repente, na pandemia, tudo isso ficou em xeque.

Com a adoção compulsória do home office na quarentena, os escritórios ficaram desertos – e, para surpresa geral, as empresas continuaram a funcionar sem grandes dificuldades. Isso levou companhias de todos os portes, mas especialmente as mais robustas, a questionar se precisam, efetivamente, de todo o espaço de que dispunham e a estudar medidas para gastar menos com aluguel ou para reduzir a imobilização patrimonial. Algumas empresas conseguiram agir rapidamente e já devolveram a área que ocupavam antes da crise, mudando-se para locais menos valorizados, ou parte dela – uma tendência que deverá se acentuar nos próximos meses e anos.

Com o home office, as empresas se deram conta de que não precisam de todo o espaço de que dispunham antes da criseAlex Silva/Estadão

O mercado já dá sinais do que vem por aí. Em São Paulo, segundo dados da Jones Lang LaSalle (JLL), empresa internacional de consultoria imobiliária na área comercial, a demanda por escritórios de alto padrão caiu em todas as regiões nobres da cidade no segundo e no terceiro trimestres de 2020. A exceção foi a Av. Faria Lima, na zona sul, onde a absorção da oferta se manteve positiva. Na região da Av. Luís Carlos Berrini e na Vila Olímpia, também na zona sul da cidade, houve a devolução de 46.000 metros quadrados e de 11.000 mil metros quadrados de escritórios, respectivamente, entre abril e setembro.

“Na primeira fase da quarentena, muitos escritórios negociaram descontos e diferimentos pontuais, mas agora a gente está entrando num segundo estágio, em que as empresas viram que o trabalho remoto funciona e estão avaliando em que medida cada setor poderá seguir em home office e qual será o efeito disso em suas atividades”, diz Mônica Lee, diretora da JLL.

Segundo Mônica, esse movimento deverá ter um impacto nos preços dos aluguéis e no setor de construção civil, com mudanças no perfil dos escritórios de alto padrão. “Como a gente tem projeção de vacância, é bem provável que nos próximos trimestre as negociações aconteçam em condições mais flexíveis”, afirma.

Nos próximos meses e anos, quando a pandemia estiver sob controle e os escritórios voltarem a ser uma alternativa segura, os ambientes de trabalho coletivo deverão ter outra configuração. “O papel do escritório poderá ser o de proporcionar experiências corporativas, espaços de criação, para reuniões mais colaborativas”, diz Adriano Marcandali, diretor para a América Latina do Workplace, plataforma de digitalização das relações de trabalho do Facebook.

“As sedes das empresas deverão ter uma função mais social do que de trabalho”

Mônica Lee, diretora da JLL

Na visão de Mônica, as sedes das empresas deverão ser menores e funcionar como um hub para integração e conexão de funcionários, com uma função mais social do que de trabalho. Al&eacu

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