‘Ajuda estatal não pode criar parasitas’, diz membro do comitê de reconstrução da Itália

Para ela, governos precisam criar critérios e contrapartidas antes de socorrer empresas, o que não foi feito em 2008

‘Ajuda estatal não pode criar parasitas’, diz membro do comitê de reconstrução da Itália
‘Ajuda estatal não pode criar parasitas’, diz membro do comitê de reconstrução da Itália

Estadão Conteúdo - 04/05/2020 09:55:05 | Foto: Estadão

Fundadora e diretora do Instituto de Inovação e Finalidade Pública da University College London, a economista Mariana Mazzucato está trabalhando no projeto para reconstruir a Itália após a pandemia da covid-19, em um comitê criado pelo primeiro-ministro, Giuseppe Conte, e comandado pelo ex-diretor executivo da Vodafone Vittorio Colao. Nesse projeto, deve focar no desenvolvimento de condicionalidades para empresas que o governo deverá socorrer, assunto que já vinha estudando.

“A questão é como reestruturar o sistema de modo que a ajuda a uma empresa seja parte de um ecossistema simbiótico e mutualista, e menos parasita.” Segundo Mariana, a pandemia expôs fraquezas do capitalismo e, agora, há uma oportunidade para corrigi-las.

Leia, a seguir, trechos da entrevista.

Em artigos recentes, a sra. afirmou que a crise expôs problemas do capitalismo, como o trabalho precário. Como resolvê-los?

A crise expõe uma fraqueza no modo que organizamos o sistema capitalista. Há modos diferentes para organizá-lo. Agora, as empresas estão pedindo ajuda dos governos. Então é também o momento para criar parcerias público-privadas simbióticas, cooperações reais, o que chamo de ‘stakeholder’ (parte interessada), e não ‘shareholder’ (acionista). Há uma oportunidade de repensar o papel do governo e de como podemos trabalhar juntos (setores público e privado) para resolver grandes problemas. Hoje, tendemos a socializar o risco e privatizar a recompensa. Podemos criar estratégias que admitam que valor e riqueza são criados coletivamente.

Na crise de 2008, empresas também pediram socorro e, depois, não houve grandes mudanças na relação público-privada. Como isso pode mudar agora?

Não será diferente se não fizermos o que estou falando. Em 2008, os governos encheram o sistema com liquidez. O Goldman Sachs foi resgatado pelo contribuinte americano, mas não houve condicionalidades. Esta é uma oportunidade para redesenhar contratos. É preciso financiar capacidade produtiva, inovações sociais e soluções para problemas, sejam eles de energia ou de desigualdade. É para isso que o dinheiro público deve servir. As empresas aéreas, você pode resgatá-las, mas precisa condicionar isso à redução de emissão de carbono, por exemplo.

A sra. vê algum governo pensando nessa reestruturação?

Na Dinamarca, o governo decidiu não ajudar empresas que usam paraísos fiscais. É assim que os governos devem operar. Por outro lado, deve-se recompensar e ajudar os negócios bons. Escrevi um livro que chama O Estado Empreendedor. Esse Estado não é apenas um que gasta e investe, é também um que sabe negociar. Qualquer capitalista ou empreendedor vai negociar e estabelecer essa relação de recompensa de risco. A questão é como reestruturar o sistema de modo que a ajuda a uma empresa seja parte de um ecossistema simbiótico e mutualista, e menos parasita.

Vários governos estão investindo em pesquisas para uma vacina contra o coronavírus. Esse trabalho com o setor privado está sendo desenvolvido de modo mais simbiótico?

Não. Não há garantias de que esses investimentos públicos para vacinas estejam sendo estruturados de modo que elas sejam acessíveis e gratuitas.

Após essa crise, os Estados continuarão tendo uma participação maior na economia?

Talvez, daqui a um ano, digam que precisamos apertar os cintos. Aí teremos mais dez anos de austeridade. Esse seria o maior erro, porque hoje os sistemas de saúde estão de joelhos, em parte, devido a cortes nos orçamentos. Outra coisa é que sempre dizem que não há dinheiro, mas, quando vamos para a guerra, ninguém diz: ‘não tem dinheiro’. Precisamos ver as crises do clima e da desigualdade com a mesma urgência que vemos um cenário de guerra. Você pode causar inflação se criar dinheiro e não expandir a capacidade produtiva necessária para crescer. Mas precisamos perceber que podemos criar dinheiro para fazer qualquer coisa se fizermos isso de modo estratégico.

Um país endividado como o Brasil também deve imprimir dinheiro para investir?

O problema nunca é a dívida, é o que acontece no país. Na Itália, antes da covid, tínhamos um déficit baixo, mas uma alta relação dívida/PIB. O motivo é que o PIB não cresce a uma boa taxa há 20 anos, porque o crescimento da produtividade é zero. Setores público e privado não investem bem. Se você tiver investimento público, mas não investir nas coisas certas – educação, saúde e pesquisa –, não vai crescer. Aí, mesmo se o déficit for baixo, a relação dívida/PIB se deteriora. A lição para o Brasil é que o País deve perguntar que tipo de crescimento quer. Se quer um crescimento conduzido pelo investimento, precisa investir em áreas importantes, em economia verde, por exemplo. O papel do governo não deve ser simplesmente aumentar os lucros da indústria, dando incentivo fiscal. Deve desenhar políticas que catalisem novos investimentos no setor privado.

Como a sra. vê o Brasil hoje?

A situação do Brasil é trágica, como a dos EUA. O País tem grandes desafios sociais e econômicos e um presidente que talvez esteja mais interessado em seu pequeno círculo. Se falta liderança preocupada com o bem comum em um país, o que acho que é o caso do Brasil, e há (na presidência) alguém que nega a ciência – quando a ciência está no centro da crise na saúde –, você vai ter um grande problema.

O que o comitê de reconstrução da Itália está fazendo e qual seu papel nele?

Acabamos de terminar a primeira fase, de estabelecer critérios para reabrir a economia. Muito disso vem da OMC, mas adaptamos para questões específicas da Itália. Comecei a trabalhar na questão de condicionalidades: como trazer objetivos ambiciosos à mesa agora que os setores estão recebendo ajuda do governo e como usar isso para que a Itália não volte ao seu normal, que é o de uma economia estagnada, com alta taxa de desemprego entre jovens e de diferenças regionais gigantes. A ideia é usar esse momento para conduzir investimentos para a inovação.

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