PF aponta organização criminosa e indicia 31 em maior fraude com créditos de carbono já investigada
Pedro Lovisi, São Paulo, Sp (folhapress) - 15/10/2025 10:47:14 | Foto: Divulgação Ascom/SFB
Algumas big techs, como Apple, Microsoft e Google, mudaram suas estratégias de compensação de carbono e agora privilegiam a compra de créditos de restauração de áreas desmatadas em detrimento de conservação de florestas.
Como essas empresas são algumas das maiores compradoras de crédito de carbono do mundo, o mercado de projetos florestais precisou se adaptar e o interesse por projetos de conservação diminuiu -inclusive no Brasil, onde há índices altos de desmatamento.
Um crédito de carbono equivale a uma tonelada de carbono que foi absorvida da atmosfera. E uma das formas de gerar esses créditos é plantar vegetação nativa em áreas desmatadas, já que árvores são capazes de absorver gás carbônico, responsável pelo aquecimento global.
Outra forma de gerar esses créditos é por meio de projetos que evitam o desmatamento em áreas ameaçadas por grileiros, madeireiros, produtores rurais e criadores de gado. Nesse caso, organizações calculam quanto sua presença na região conseguiu evitar de destruição da floresta.
Esse último modelo, conhecido pela sigla Redd+, foi por alguns anos o principal fornecedor de créditos de carbono florestais. Mas denúncias de cálculos supervalorizados e abusos sobre comunidades locais fizeram com que empresas compradoras de créditos diminuíssem seu apetite em compensar emissões com esses ativos. Investigações recentes envolveram, inclusive, gigantes de tecnologia, gestoras de ativos e petroleiras.
"Todo esse pessoal está sendo acusado de ter comprado crédito podre, então, se você é um comprador institucional de um banco ou de um fundo de pensão, vai pensar três vezes antes de entrar num negócio desse. O risco reputacional é muito grande", afirma Shigueo Watanabe Jr, pesquisador no Instituto ClimaInfo.
A busca por projetos de restauro, conhecidos pela sigla ARR, passa justamente por isso. Nos últimos meses, gigantes da tecnologia, como a Google, anunciaram investimentos bilionários em iniciativas na área.
"Antes as empresas faziam seu inventário e depois pensavam em como compensar, elas não se preocupavam muito sobre de onde vinha o crédito. Mas hoje há uma série de direcionamentos internacionais sobre como a empresa deve fazer seu inventário e quais os tipos de projetos são os mais íntegros para a compensação", afirma Ana Moeri, presidente do Ekos Brasil, instituto que conecta projetos a empresas.
Agora, está cada vez mais difícil encontrar novos projetos de Redd+ no mundo. A Verra, maior certificadora de créditos de carbono, tinha 27 projetos de ARR e 22 de Redd+ em desenvolvimento ou validação em 2022. Em 2023, foram 28 e 7; em 2024, 22 e 2 e, até abril de 2025, 7 e 2. Os dados foram coletados pela pesquisadora Fernanda Valente, da FGV (Fundação Getulio Vargas).
E o Brasil segue esse movimento. Em julho, o Governo do Pará assinou a primeira concessão de restauração florestal para a iniciativa privada, criando uma demanda pública no mercado. O projeto, inicialmente, seria financiado pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), mas três meses depois ainda nenhum empréstimo saiu do papel.
O banco também anunciou uma parceria com a Petrobras para restaurar 50 mil hectares de áreas degradadas na amazônia e outra com a empresa Re.green para restaurar 15 mil hectares de florestas na amazônia e na mata atlântica.
O BNDES ainda organiza uma série de editais para restauração florestal em áreas públicas em parceria com o governo federal, o que vai movimentar bilhões de reais nos próximos anos –desde 2023, foram destinados R$ 900 milhões em recursos não reembolsáveis para projetos do tipo.
Além disso, uma startup formada por cinco multinacionais (entre elas, Suzano, Itaú e Vale) anunciou, em abril, investimentos de R$ 55 milhões para restaurar uma área no sul da Bahia.
Essa mudança de mercado tem obrigado algumas empresas a recalibrarem seus focos, ainda que ainda vejam importância nos projetos de conservação.
A Carbonext, por exemplo, uma das maiores desenvolvedoras do Brasil, tem nove projetos de Redd+ em seu portfólio, mas estuda inaugurar projetos de restauro. "A Carbonext não trata o ARR como um concorrente do Redd+ e, como tem financiamento no mercado, a gente também quer entrar nessa agenda", diz Jeronimo Roveda, diretor de relações institucionais da Carbonext.
Ele, porém, pontua que o Brasil desmatou 1,4 milhão de hectares em 2024 e, se seguir esse número, não conseguirá restaurar 12 milhões de hectares até 2030, como almejado pelo governo Lula.
"O ARR está sendo extremamente valorizado e trazendo para o mercado um grande ganho para o cenário ambiental, mas a gente precisa trazer de volta a discussão sobre conservação. Não adianta a gente querer plantar e continuar desmatando", diz Roveda .
Outra companhia que segue esse raciocínio é a Systemica, ligada ao BTG Pactual. A empresa é uma das principais desenvolvedoras de projetos Redd+ do país, mas começou no ano passado a procurar projetos de restauro na amazônia -ela, aliás, venceu a licitação do Pará organizada em março.
"Hoje há um grande interesse por projetos de restauração, mas eu acho que vai haver uma retomada de projetos de Redd+. E isso vai acontecer simplesmente por uma racionalidade econômica, já que é a solução de compensação mais barata", diz Munir Soares, CEO da Systemica.
A diferença de investimentos entre os dois modelos é enorme. Hoje, segundo quem acompanha o mercado, um projeto de conservação exige investimentos entre US$ 2 e US$ 10 por hectare, enquanto os de restauro variam entre US$ 7.000 e US$ 10 mil por hectare.
A diferença nos preços dos créditos, por outro lado, não seguem a mesma proporção: os ativos de conservação tendem a valer no máximo US$ 12, enquanto um de restauro varia entre US$ 30 e US$ 70, a depender do volume negociado.
"Os projetos de ARR têm mais semelhança com projetos de infraestrutura, porque não necessariamente nessas terras há comunidades morando, o que gera um capex [investimentos em obras] intensivo. Já os projetos de conservação mais valorizados estão ligados a comunidades tradicionais e a pequenos produtores, onde 70% do ganho fica com a comunidade", diz Andrea Resende, gerente de investimentos do Impact Earth, organização à frente do Fundo de Biodiversidade da Amazônia, com carteira de R$ 250 milhões.
ENTENDA A SÉRIE
A série de reportagens Mercado de Carbono, publicada às vésperas da COP30 (conferência do clima das Nações Unidas, em Belém), retrata o funcionamento das compensações por emissões de gases de efeito estufa. O tema tem sido debatido entre países, empresas e organismos internacionais, em busca de regras em comum para os chamados mercados voluntário e regulado.
PF aponta organização criminosa e indicia 31 em maior fraude com créditos de carbono já investigada
VINICIUS SASSINE, BELÉM, PA (FOLHAPRESS) - A PF (Polícia Federal) apontou a existência de uma organização criminosa e indiciou, em dois relatórios finais, 31 pessoas suspeitas de participação em esquema de fraude e grilagem na amazônia, voltado à geração de créditos de carbono a partir dessa grilagem de terras públicas no sul do Amazonas.
A Operação Greenwashing, resultado de uma investigação feita pela PF em Rondônia, foi deflagrada em 5 de junho de 2024. É a maior fraude com créditos de carbono -o valor movimentado com a venda desses créditos chegou a R$ 180 milhões- já investigada no país.
Mais de um ano depois, a operação policial resultou em dois dos três relatórios finais previstos, elaborados a partir das provas colhidas em diligências como quebras de sigilo telefônico e busca de computadores e documentos nas casas dos investigados.
Um relatório, de 108 páginas, foi concluído em dezembro de 2024. O outro, de 392 páginas, em maio de 2025. Os documentos foram encaminhados à Justiça Federal.
A PF afirmou que o principal investigado se posicionou como "o maior vendedor de créditos de carbono globalmente", inclusive com participação na COP28 (conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas), realizada em 2023 nos Emirados Árabes Unidos. A COP30 ocorrerá em novembro, em Belém.
"Em novembro de 2023, foi atingido um marco significativo, com a expansão para 1 milhão de hectares dedicados a projetos de créditos de carbono", cita um dos relatórios. "Essa organização vem empregando contemporaneamente estratégias para expandir seu território a dimensões superiores às de alguns estados." O objetivo era chegar a 3 milhões de hectares, segundo a polícia.
Ao apontar prática de crimes por parte de 31 pessoas, nos relatórios de indiciamento, a PF disse: "Resta clara a existência de uma organização criminosa coesa, hierarquizada e com atribuições específicas a cada membro, exigindo, assim, a persecução penal dos respectivos integrantes com base nos fatos ora verificados."
Conforme a investigação, os crimes foram praticados por três núcleos, liderados por Ricardo Stoppe Júnior, Élcio Aparecido Moço e José Luiz Capelasso. A prática criminosa só foi possível com a corrupção de servidores no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), no Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas) e em cartórios de cidades do Amazonas, disse a PF.
A reportagem não localizou a atual defesa de Stoppe Júnior. Advogado e assessor de imprensa que atuavam para o empresário dizem não representá-lo mais, nem ter o contato da atual defesa. A defesa de Moço disse que não vai comentar a respeito. A defesa de Capelasso não respondeu aos questionamentos da reportagem.
O Incra disse apoiar e auxiliar na investigação, para medidas administrativas cabíveis. O Ipaam afirmou que não compactua com práticas ilícitas dos servidores e que estava à disposição para auxiliar os investigadores.
O esquema investigado envolveu, além da geração de créditos de carbono em áreas griladas, fraudes no manejo de madeira, gado fantasma e desmatamento ilegal.
Um relatório afirmou que, do total de 1 milhão de hectares destinados a projetos de créditos de carbono, 537,9 mil hectares foram grilados. As áreas foram valoradas em R$ 819,9 milhões; houve exploração ilegal de 1,1 milhão de m3 de madeira em tora; comercialização de 179,5 milhões em créditos de carbono; e danos ambientais estimados em R$ 606,4 milhões, segundo a PF.
O segundo relatório, que trata de fatos complementares, cita uma "usurpação" de 146,1 mil hectares do patrimônio público, avaliado em R$ 333,4 milhões; extração ilegal de 391,9 mil m3 de madeira em tora, com dano ambiental estimado em R$ 178,6 milhões; e venda fraudulenta de créditos de carbono no valor de R$ 106,6 milhões.
O principal investigado é Stoppe Júnior, dono do grupo Ituxi, com atuação em Lábrea, no sul do Amazonas. Ele foi indiciado pela PF por suspeitas de corrupção ativa, desmatamento em terra pública, falsidade ideológica, estelionato, crime contra o sistema financeiro, invasão de terra pública, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Parte desses crimes, como falsidade ideológica, desmatamento ilegal e organização criminosa na condição de lideranças, é atribuída também aos supostos líderes dos outros dois núcleos, Moço e Capelasso.
Em junho de 2024, na deflagração da primeira fase da operação, foram presos preventivamente Stoppe Júnior, Élcio Moço, José Capelasso, Ricardo Villares Stoppe e Poliana Capelasso.
Ao todo, foram cumpridos 76 mandados de busca e apreensão em Rondônia, Amazonas, Mato Grosso, Paraná, Ceará e São Paulo, com autorização da Justiça Federal.
Houve buscas em 22 empresas, quatro cartórios de registro de imóveis no sul do Amazonas e em órgãos públicos como a superintendência do Incra no estado e uma secretaria do governo do Amazonas que cuida de questões territoriais.
A Greenwashing já teve seis fases. Uma delas, a Expurgare, prendeu servidores do Ipaam. A Justiça determinou o afastamento de cinco servidores, incluído o então diretor-presidente do órgão, responsável por fiscalização e licenciamento ambientais na esfera do estado do Amazonas.
Os presos na primeira fase ficaram detidos por seis meses. Eles aguardam em liberdade o curso do processo. A denúncia ou o arquivamento das acusações, a partir dos relatórios de indiciamento, cabem ao MPF (Ministério Público Federal).
Os relatórios da investigação apontam a participação de agrimensores e engenheiros, que atuam no georreferenciamento de áreas, em inserção de dados fictícios em sistemas como o Sigef (Sistema de Gestão Fundiária).
Essa atuação levava a um "deslocamento de títulos para regiões de interesse do grupo, muitas vezes sobrepondo-se a terras públicas federais ou estaduais", segundo a PF.
"Com a valorização dos créditos de carbono ao longo do tempo, Ricardo, com Élcio e Capelasso, optou por diversificar e intensificar suas operações nas áreas adquiridas ilegalmente", cita um relatório. O grupo atuou com, pelo menos, cinco projetos de créditos de carbono.
Créditos de carbono são gerados a partir de atividades que evitam desmatamento e degradação da floresta. Um crédito equivale a uma tonelada de CO2 que deixa de ser emitida para a atmosfera em razão do desmatamento evitado. Empresas atuam no mercado voluntário, em que os créditos são vendidos a empresas que precisam compensar suas próprias emissões de gases de efeito estufa.
ENTENDA A SÉRIE
A série de reportagens Mercado de Carbono, publicada às vésperas da COP30 (conferência do clima das Nações Unidas, em Belém), retrata o funcionamento das compensações por emissões de gases de efeito estufa. O tema tem sido debatido entre países, empresas e organismos internacionais, em busca de regras em comum para os chamados mercados voluntário e regulado.
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