Gangstalking: médicos alertam para risco de crença em perseguição

Pessoas com transtorno se dizem vítimas de assédio e arma psicotrônica

Gangstalking: médicos alertam para risco de crença em perseguição
Gangstalking: médicos alertam para risco de crença em perseguição

Por Alex Rodrigues - Repórter Da Agência Brasil - Brasília  - 08/08/2024 10:58:49 | Foto: © Joédson Alves/Agência Brasil

“Estou em prantos. Sinto tanta dor, inclusive em minhas partes íntimas, como se alguém as estivesse queimando”, escreveu a soteropolitana R.S.B*, ainda em 2012. À época, a mulher, que dizia ser alvo da ação de pessoas que a perseguiam e tentavam prejudicá-la, encontrou na internet um espaço onde compartilhar sua dor.

“Sou mais uma vítima das chamadas armas psicotrônicas, cuja ação ninguém é capaz de enxergar. E que suspeito que estão sendo usadas contra mim por traficantes do bairro onde moro, que agem impunemente. Não consigo escrever mais porque, além de gravarem tudo que faço e penso, eles me causam um sofrimento que só quem passa conhece. Se não morrer, em breve volto a escrever, mas venho outra vez pedir ajuda”, acrescentou R.S.B.

Não demorou para que outros internautas se identificassem com a “aflição”, o “desgosto” e a “raiva” que a soteropolitana manifestava em seus desabafos. Até porque, relatos semelhantes já não eram incomuns em fóruns e comunidades online , compartilhados por pessoas de diferentes nacionalidades e que manifestavam uma crença perturbadora: a de serem vítimas do chamado gangstalking .

Brasília (DF), 07.08.2024 - Arte de gráfico para a matéria Alerta de gatilho. Arte/Agência Brasil

O gangstalking é um fenômeno complexo que, a exemplo de várias expressões de transtorno delirante, expõe o quão frágil pode ser a capacidade do ser humano de diferenciar a fantasia do real (no sentido de juízos socialmente compartilhados). Resumidamente, trata-se de uma crença infundada em que um indivíduo ou grupo é alvo da perseguição sistemática de pessoas ou entidades dispostas a desacreditar, prejudicar e levar suas "vítimas" à morte.

Diferencia-se do crime de perseguição (ou stalking ), tipificado no Código Penal brasileiro desde 2021, porque, enquanto este possui elementos objetivos e provas concretas para denúncia, a crença na perseguição por grupos está frequentemente associada a delírios e alucinações, muitas vezes envolvendo teorias da conspiração.

Muitas pessoas que afirmam serem seguidas, vigiadas e assediadas física e psicologicamente se identificam como indivíduos-alvo (ou target individuals - TIs). Compartilham a tese de que seus "perseguidores" (ou stalkers ) possuem não só "armas psicotrônicas", capazes de afetar o sistema nervoso, como também modernos dispositivos eletrônicos capazes de "ler" pensamentos e controlar o comportamento de suas "vítimas". Há, também, os que se veem como pessoas ungidas, escolhidas para desempenhar uma missão especial. E que, consequentemente, creem que seus supostos perseguidores não passam de marionetes a serviço de forças malignas que pretendem corrompê-los e desviá-los do caminho do bem.

Internet

O termo gangstalking não consta de nenhum manual de diagnóstico psiquiátrico, mas relatos como o de R.S.B. dão conta de um sofrimento real. Tanto que os poucos especialistas que já se debruçaram sobre o tema destacam a importância de que os casos sejam tratados com sensibilidade e empatia. Até porque, conforme explica o professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Paulo Dalgalarrondo em um livro que é referência acadêmica no estudo dos transtornos mentais, a crença em ser perseguido é o tipo de delírio mais frequente, podendo surgir de experiências sensoriais intensas, como alucinações.

"O indivíduo acredita com toda a convicção que é vítima de um complô e que está sendo perseguido por pessoas conhecidas ou desconhecidas […] não lhe restando alternativa a não ser integrar [tal crença] em sua vida por meio do delírio”, disse o professor Paulo Dalgalarrondo.

Com o advento da internet, comportamentos que antes demoravam a se propagar passaram a se espalhar rapidamente pelo mundo, sem filtros. E, em 2015, R.S.B. já não estava só. A soteropolitana viajou mais de 2,5 mil quilômetros para participar de um evento sobre crimes tecnológicos e direitos humanos, realizado no plenário da Câmara Municipal de Barra Velha, no litoral norte de Santa Catarina. O evento atraiu poucas pessoas, mas foi transmitido pela internet e gravado. Um trecho de R.S.B. palestrando segue sendo compartilhado por defensores do reconhecimento do gangstalking no Brasil.

"Lembro vagamente desse evento. Acho que uma das organizadoras morava na cidade na época. Ela me pareceu muito atuante, muito inteirada. Eu nunca tinha ouvido falar sobre o assunto e, ainda que não me lembre mais dos detalhes, me recordo de ter pensado que algumas coisas me pareceram bem fora da realidade, fora de contexto, mas cheguei a ficar exatamente surpresa. Afinal, há tantas coisas que não acreditávamos serem possíveis que já aconteceram", comentou a ex-vereadora Marciléia Reitz, que, à época, acompanhou parte do evento presencialmente.

Determinada a dar visibilidade a sua causa, na sequência, R.S.B viajou a Brasília. Saindo da Rodoviária do Plano Piloto, a caminho do Congresso Nacional, fez uma transmissão narrando suas dificuldades. "Vou dizer uma coisa: vou morrer de cabeça erguida. Porque no dia em que fui para o Fórum [de Barra Velha], que desgraça. Tá louco. É tanto gemido, tanto toque na minha genitália, tanta ameaça e palavrão", narrou a soteropolitana, falando alto, para espanto dos pedestres que caminhavam ao seu redor.

"Olha como as pessoas estão espantadas. Olha! E eu não posso fazer nada”, continuou a soteropolitana, em prantos, gritando em plena rua. Ao fim de quase cinco minutos de um discurso desconexo, o vídeo é interrompido no momento em que R.S.B. passa por um viaduto e começa a reproduzir as vozes de comando que diz estar ouvindo. "Se joga! Se jogue do viaduto! Vaca."

R.S.B. caminhou por mais um quilômetro e meio até o Senado, onde abordou o então presidente da Casa, Renan Calheiros. Após participar de uma audiência pública no Auditório Petrônio Portela, o político respondia às perguntas de jornalistas quando a mulher pôs um ponto final na entrevista. “Seu Renan, quero que o senhor diga algo. Sou vítima de tortura pela neurociência. Empresários, todo o planeta, todos estão envolvidos. O que eu faço? Preciso de ajuda. Preciso que o senhor designe uma comissão para poder nos ajudar”. Protocolar, Renan a aconselha a enviar as informações de seu caso à presidência do Senado e some em meio aos corredores institucionais.

Associações

Enquanto isso, o termo gangstalking e a crença no emprego das chamadas armas psicotrônicas passaram a circular com mais força na internet. Nos Estados Unidos – onde não demoraram a surgir empresas vendendo de dispositivos contra o assédio eletrônico a camisetas alusivas ao tema – e no Brasil, foram criadas entidades nacionais com o objetivo manifesto de defender os interesses dos indivíduos-alvo. Ainda que, anonimamente, vários deles defendam, em fóruns e grupos, que, por segurança, as “vítimas” do gangstalking não devam se expor nem confiar em ninguém – incluindo parentes e amigos que tentem convencê-los de que precisam de ajuda.

No Brasil, há ao menos duas entidades nacionais com CNPJ ativo junto à Receita Federal. Uma foi fundada em setembro de 2022, para proteger e amparar as vítimas de tortura psicoeletrônica, e tem sede em Nova Friburgo (RJ). A outra, dedicada à mesma causa, funciona no Recife.

“São duas associações independentes, com o mesmo propósito. A que criamos [no Recife], em 2017, foi fundada por indivíduos-alvo para combater o uso de dispositivos e armas que usam ondas eletromagnéticas com a finalidade de invadir e controlar a mente de cidadãos comuns, torturando-os, sabotando-os e, em muitos casos, eliminando-os”, disse à Agência Brasil R.R.F.*, um dos fundadores da entidade pernambucana.

Sem fornecer detalhes, R.R.F contou que, devido a problemas “sérios” de saúde, não participa mais do dia a dia da organização, acompanhando apenas as atividades públicas, como as reuniões remotas. “A entidade, hoje, tem novos membros e está mais voltada à comunicação nas redes, principalmente no YouTube e Facebook. Além disso, mantém intercâmbio com associações de outros países. Fazemos ações junto aos órgãos públicos para tentar corrigir as brechas legais”, acrescentou R.R.F., referindo-se ao exemplo da cidade de Richmond, na Califórnia (EUA), onde, em 2015, o Conselho Municipal aprovou uma resolução declarando o município como uma zona segura, livre da ação de armas espaciais.

O exemplo de Richmond ilustra a complexidade de se abordar os delírios persecutórios ou as teorias da conspiração em geral, fundadas em informações imprecisas, mal interpretadas ou completamente falsas. A possibilidade de grandes potências desenvolverem armas espaciais é uma hipótese plausível, conforme ficou patente no início deste ano, quando o governo dos EUA alertou o Congresso norte-americano e países aliados na Europa, sem fornecer provas, que a Rússia estaria desenvolvendo uma arma que poderia ser usada contra satélites ocidentais, provocando o caos nas telecomunicações e infraestrutura. Acontece que a medida do Conselho Municipal de Richmond, anterior a isso, além de pouco efetiva, gerou, segundo a imprensa local, dezenas de ligações de cidadãos que pediam à polícia que investigasse o suposto uso de chips , insetos e outros dispositivos para controle da mente e do corpo.

“É um consenso de que há coisas sobre as quais não devemos falar, informações que não podemos passar adiante", acrescentou R.R.F, esquivando-se de algumas perguntas na entrevista à reportagem da Agência Brasil, para, em seguida, se estender ao responder sobre a possibilidade de o gangstalking ser apenas um delírio persecutório e um indício de que os que nele acreditam precisam do apoio de um profissional em saúde mental.

"Não aceito estes diagnósticos e muitas outras pessoas também os combatem. Na associação, procuramos filtrar os participantes, verificando se apresentam algum tipo de delírio ou sintoma esquizofrênico. É uma filtragem eficiente. E temos documentos que descrevem ocorrências muito lógicas", disse R.R.F, reafirmando a crença na existência de dispositivos capazes de ler pensamentos, controlar comportamentos e causar mal a grandes distâncias. "Não tem como nos classificar como paranoicos. Ainda que haja quem, por medo, prefira fingir que admite tal possibilidade para, assim, tentar seguir adiante. Qualquer que seja o caso, estamos tendo prejuízos incalculáveis. Tive que abrir mão de muitas coisas, pois sofro com esses sintomas há muitos anos. Procurei instituições que pudessem me ajudar, mas percebi que elas estão prontas para fazer algumas coisas que desviam de suas funções. Então, chegou um momento, em 2018, que percebi que a coisa era muito grave e resolvi ficar mais reservado”, finalizou.

Brasília (DF) 06/08/2024 - Carta com pedido de socorro.
Foto: Arquivo

Documento enviado por uma associação à Câmara de João Pessoa, junto com pedido de informações sobre ações para proteger cidadãos de “métodos de tortura psicoeletrônica” - Arquivo

Leis

Discrição não é o que move o gaúcho W.A.D.P*. Em 12 de junho de 2023, ele protocolou, na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), um pedido de informações. Queria saber se havia algum projeto de lei propondo a proteção dos cidadãos “contra ataques por armas laser ” tramitando na Casa.

“Se não houver, peço que a iniciativa popular das vítimas paulistanas que estão sendo assassinadas com o uso dessas armas seja apresentada a todos os deputados estaduais [para] ver se algum deles a coloca em seu nome”. No pedido, W.A.D.P cita, como fonte de inspiração, iniciativas semelhantes levadas a cabo pela associação sediada em Nova Friburgo.

Morador de Porto Alegre, W.A.D.P. usou a internet para pedir o mesmo tipo de informação e fazer a mesma proposta a várias outras casas legislativas do país. À Câmara Municipal de Itaporanga, pequena cidade do interior paulista, a cerca de mil quilômetros da capital gaúcha, enviou, no início deste ano, um texto confuso, misturando português, inglês e espanhol, sugerindo a aprovação de um decreto municipal para proteger os moradores da cidade dos “abusos tecnológicos perpetrados pelos poderes federal, estadual ou estrangeiros”. Já ao Senado, propôs, em 2022, a aprovação de uma lei definindo e punindo o crime de abuso tecnológico por meios psicotrônicos contra parlamentares e seus eleitores – ele próprio chegou a ser impedido de votar após ter sido decretado civilmente incapaz em 2014, direito que o Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul só lhe restituiu em 2020.

O pedido feito à Alesp foi respondido no mesmo dia por um servidor público que recomendou que W.A.D.P. enviasse sua sugestão a um deputado de sua escolha para que, "em caso de afinidade, o parlamentar apresente um projeto de lei sobre o tema”. Já em Itaporanga, outro servidor municipal que teve que realizar a pesquisa solicitada pelo internauta se limitou a informar não haver nenhuma iniciativa sobre o tema em discussão e deu o assunto por encerrado.

Ocorre que, conforme a Agência Brasil constatou com uma rápida pesquisa na internet, W.A.D.P. não é o único a agir desta forma. Há dezenas, talvez centenas de pedidos semelhantes encaminhados por outras pessoas para prefeituras, como as de João Pessoa e Patrocínio (MG), e assembleias legislativas estaduais, como a de Alagoas.

"Não resta dúvida de que se trata de um quadro psicótico e de que essas pessoas precisam de tratamento adequado. Trabalho com isso há décadas, dou aulas sobre o assunto, tenho pesquisas publicadas no Brasil e no exterior, mas nunca tinha ouvido falar sobre gangstalking ou armas psicotrônicas", declarou o professor de pós-graduação do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Alexandre Loch, após analisar parte do material que a Agência Brasil reuniu ao longo desta apuração.

Brasília (DF) 07/08/2024 - Alexandre Loch, psiquiatria e professor do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) 
Gangstalking: a crença persecutória que desafia especialistas em saúde
Indivíduo acredita ser alvo de pessoas que tentam prejudicá-lo.
Foto: Alexandre Loch,/Arquivo Pessoal

Alexandre Loch, professor do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP - Alexandre Loch/Arquivo Pessoal

"O que chama a atenção é a organização, a reunião dessas pessoas nas redes sociais. É a primeira vez que vejo algo assim, tão organizado. Uma coisa que me chamou a atenção e que acredito que poderia ser pesquisada é que há alguns elementos da cultura contemporânea que podem servir de combustível para o surgimento de alguns sintomas [de transtornos mentais]. Vivemos em uma sociedade muito paranoica e alguns fenômenos culturais podem engatilhar sintomas psicóticos. Por exemplo, a [exacerbação da] polarização [político-ideológica]. A briga entre esquerda e direita. Acho que, em uma mente mais fértil, isso pode criar ou alimentar fenômenos como o gangstalking ", acrescentou Loch ao explicar que há, basicamente, dois principais sintomas psicóticos: as alucinações, que podem envolver qualquer um dos cinco sentidos, e os delírios, a crença em coisas que não existem. "Como, por exemplo, crer ser perseguido pelo FBI ou por quem quer que seja.”

"É sempre importante estarmos atentos a esses dois tipos de sintomas. Na maioria das vezes, eles tendem a passar sem maiores consequências. Mesmo assim, são um fator de alerta, podendo indicar outros transtornos", observou Loch.

"A pessoa pode, por exemplo, estar deprimida, ansiosa ou desenvolvendo outros transtornos. Daí a importância de identificarmos esses sintomas e dedicarmos alguma atenção ao tema. Até porque, basta ver os relatos das pessoas para verificar que elas juram não estar doentes, embora algumas afirmem ouvir vozes há sete, oito anos, ou que há quem pode ler seus pensamentos. Quando uma pessoa dessas vai buscar ajuda? Parentes, amigos e profissionais da saúde têm que estar atentos a isso", concluiu o professor.

A psicoterapeuta e assistente social norte-americana Liz Johnston é uma das poucas acadêmicas a estudar o gangstalking no mundo. Professora da Universidade Politécnica da Califórnia, ela debruçou-se sobre o assunto ao atender dois pacientes que se intitulavam indivíduos-alvo e que diziam ser perseguidos por pessoas que se uniram para prejudicá-los. Organizadora de um livro que reunirá artigos de pesquisadores convidados a colaborar com a publicação, ela é cautelosa ao tratar de diagnósticos.

"Qual o benefício de rotularmos alguém com um problema de saúde mental?", questiona Liz, para quem o mais importante é acolher as pessoas que, de fato, estão sofrendo e, a seu modo, pedindo ajuda. Interessada nos dilemas éticos envolvidos no tema, a psicoterapeuta acredita que investigar o gangstalking pode ajudar a ciência a "iluminar o quebra-cabeça das causas da paranoia", mas diz que o tema interessa também a estudiosos das mídias sociais, direito, ciências sociais, entre outros campos. Leia aqui os principais trechos da entrevista de Liz Johnston à Agência Brasil.

É importante procurar ajuda de um profissional capacitado para lidar com situações difíceis a fim de manter a saúde mental. O Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece um serviço de escuta acolhedora e apoio emocional, disponível no telefone 188. Há também o Mapa da Saúde Mental, ferramenta que permite a busca de serviços públicos e gratuitos por localidade.

*Para preservar a identidade de algumas das pessoas citadas nesta matéria, a Agência Brasil optou por não informar seus nomes. Pelo mesmo motivo, os nomes das associações mencionadas também foram omitidos, e citações extraídas de publicações pessoais na internet foram ligeiramente modificadas, preservando o teor das mensagens.

Edição: Juliana Andrade

Rótulos sobre gangstalking podem agravar problema, diz pesquisadora

Liz Johnston é professora da Universidade Politécnica da Califórnia

Ao longo da última década, um fenômeno complexo e controverso ganhou espaço no ambiente digital quase que imperceptivelmente. Em diferentes países, pessoas que se denominam indivíduos-alvo (ou target individual ) passaram a se reunir em grupos e fóruns digitais onde denunciam a ação orquestrada de pessoas e organizações para desacreditá-las, prejudicá-las e, no limite, levá-las à morte.

Brasília (DF) 06/08/2024 - Psicoterapeuta e assistente social Liz Johnston, professora da Universidade Politécnica da Califórnia. 
Foto: Gina N. Cinardo/Divulgação

Psicoterapeuta e assistente social Liz Johnston, professora da Universidade Politécnica da Califórnia - Gina N. Cinardo/Divulgação

Com a validação de quem acredita ser vítima do mesmo tipo de assédio, algumas dessas pessoas deixaram o espaço virtual para atuar também no ambiente analógico. Criaram associações e passaram a encher assembleias estaduais e câmaras municipais de pedidos de informação e sugestões de leis de iniciativa popular para proteger as vítimas do chamado gangstalking – a crença de que se é alvo de uma perseguição organizada por um grupo desconhecido de pessoas com acessos a modernos dispositivos capazes de interpretar os pensamentos e modificar o comportamento de suas vítimas.

Professora da Universidade Politécnica da Califórnia, a assistente social e psicoterapeuta Liz Johnston se interessou pelo tema ao constatar que dois de seus pacientes compartilhavam a mesma convicção. “Buscando meios de ajudá-los, comecei a pesquisar”, contou Liz, que não tardou a perceber a relevância do tema e suas implicações: embora incerto, o número de pessoas que se autodeclaram indivíduos-alvo não é irrelevante.

Liz está finalizando um livro que deve ser publicado em breve, pela editora inglesa Ethics Press, com artigos inéditos escritos por pesquisadores que já publicaram trabalhos acadêmicos sobre o gangstalking . Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista que a professora concedeu à Agência Brasil, por e-mail .

Agência Brasil: Primeiramente, o que é gangstalking ? Quais suas especificidades?
Liz Johnston: Gangstalking é um conceito emergente no campo das crenças persecutórias. Caracteriza-se pela crença pessoal de ser perseguido ou vigiado por um grupo difuso de pessoas. Ao contrário do que acontece nos casos de perseguição individual [ stalking ], as vítimas do gangstalking não identificam claramente seus perseguidores, acreditando tratar-se, na maioria das vezes, de pessoas associadas a agências governamentais ou autoridades policiais. Essas pessoas se identificam como indivíduos-alvo (TIs) e relatam invasões domiciliares, vigilância aberta ou encoberta, dor infligida por dispositivos remotos e controle eletrônico da mente. O conceito abrange áreas como criminologia, psicologia, redes sociais e serviço social, mas, como não se encaixa perfeitamente em uma única categoria de investigação, há, ainda, uma escassez de pesquisas acadêmicas.

Apesar disso, os TIs são frequentemente considerados paranoicos. Um diagnóstico que pode criar mais problemas do que ajudar a resolver a questão. Há, inclusive, um debate sobre o quão ético é rotular pessoas com diagnósticos estigmatizantes como paranoia, especialmente diante da ausência de tratamentos efetivamente eficazes. Outra questão ética é: por que médicos e psicólogos têm o poder e o privilégio de decidir se os clientes estão delirando? A definição de "ideia delirante" é complexa. Basta ver que muitas pessoas acreditam em fenômenos como fantasmas ou ovnis [objetos voadores não identificados] e não são taxadas de delirantes.

Agência Brasil: Fazer essa ressalva em relação ao diagnóstico não pode ser compreendido como uma validação da crença persecutória dessas pessoas?
Liz Johnston: Este é um ponto-chave no meu livro. Muitos pesquisadores acreditam que os TIs são delirantes porque o controle mental, hoje, seria algo impossível, ou porque outras ações relatadas seriam extremamente caras. Há, contudo, um histórico de programas de vigilância governamental voltados contra cidadãos norte-americanos, como, por exemplo, o Projeto MK-Ultra [programa experimental por meio do qual a Agência Central de Inteligência dos EUA (CIA) financiou experimentos de controle mental sem o conhecimento das “cobaias involuntárias”] que envolveu experimentos com o uso de drogas, eletrochoques, isolamento, abuso e tortura.

Já o Departamento Federal de Investigação [FBI] infiltrou agentes secretos em organizações políticas, conduzindo projetos secretos e ilegais de vigilância como parte do seu programa de contrainteligência. De ativistas dos direitos civis a integrantes da Ku Klux Klan foram alvo da vigilância e de ações para desacreditá-los. As informações a respeito desses fatos estão disponíveis na internet, e os TIs acabam recorrendo a elas para fundamentar a crença de que eles também estão sendo perseguidos. Minha tese é que os indivíduos-alvo têm pouco ou nenhum apoio [social]. E que, talvez, nesses casos, a ideia de que um grupo de pessoas se importa com você a ponto de persegui-lo acabe funcionando como uma espécie de comunidade de apoio. Da mesma forma como os grupos sobre gangstalking , nos quais esses indivíduos encontram outras pessoas que creem neles que não os rotulam como paranoicos ou delirantes.

Agência Brasil: Evitar termos diagnósticos é para não estigmatizar as pessoas?
Liz Johnston: Qual o benefício de rotularmos alguém com um problema de saúde mental dizendo “você é paranoico”? Creio não ser construtivo rotular pessoas sem uma teoria válida e sem um tratamento eficaz. Insisto: muitas pessoas acreditam em fantasmas. Por que não rotulamos isso como um delírio persecutório? Houve casos documentados de perseguição governamental nos EUA — e se alguns TIs estivessem realmente sendo visados pelo governo? O objetivo do livro que lançaremos em breve é revisar as discussões e os pontos de vista atuais sobre o gangstalking , destacando a falta de pesquisa, identificando aspectos desconhecidos e recomendando mais investigações acadêmicas sobre o tema.

Agência Brasil: Em suas pesquisas, a senhora conseguiu identificar a origem dos termos gangstalking e indivíduos-alvo (TIs)? Desde quando esse tema e vem despertando o interesse de profissionais da saúde e acadêmicos?
Liz Johnston: Os termos gangstalking e indivíduos-alvo tiveram origem em grupos online , criados pelos próprios TIs para terem espaços onde descrever suas experiências. O primeiro artigo acadêmico sobre o assunto foi publicado em 2015. Nele, a autora, a psicóloga Lorraine Sheridan, usa a expressão group-stalking (perseguição em grupo).

Agência Brasil: Há registros de que esse fenômeno esteja ocorrendo em outros países além dos Estados Unidos e do Brasil? Há pessoas estudando o gangstalking a sério em outras partes do mundo?
Liz Johnston: Só tenho conhecimento de artigos de pesquisa publicados nos Estados Unidos e na Austrália. Mas, mesmo entre profissionais de saúde dos Estados Unidos, o tema ainda tem pouca visibilidade. Há pouco tempo, fui convidada a fazer uma apresentação sobre gangstalking em hospitais locais, e os profissionais de medicina na audiência mal tinham ouvido falar do assunto.

Agência Brasil: O que a motivou a estudar o tema? Por que a senhora crê ser importante identificar, descrever e compreender o gangstalking quando alguns especialistas tratam o assunto como uma típica manifestação psicótica, fenômeno já bastante estudado?
Liz Johnston: Tive dois clientes que acreditavam ser alvos de perseguição organizada. Buscando meios de ajudá-los, comecei a pesquisar e concluí que a paranoia em geral ainda não é bem compreendida, que não há uma teoria coerente sobre o tema, conforme sustento em um dos meus artigos. Hoje, acredito que o gangstalking é um tema relevante por vários motivos. Nos EUA, por exemplo, ele poder estar associado a comportamentos violentos, conforme apontou a doutora Christine M. Sarteschi. Apesar disso, há, hoje, menos de 15 artigos resultantes de pesquisa escritos em inglês. Em contraste, uma pesquisa recente no Google por gangstalking me devolveu 632 mil resultados sobre o assunto, incluindo muitos relatos em primeira pessoa.

Agência Brasil: Considerando o pequeno número de estudos sérios, é possível traçar um perfil das pessoas que se identificam como "vítimas" de gangstalking? A senhora crê que as principais características se mantenham, independentemente da nacionalidade ou cultura, ou tendem a variar?
Liz Johnston: Penso que ainda não há estudos suficientes para estabelecer um perfil detalhado dos chamados indivíduos-alvo. Com base na minha revisão da literatura e na observação de postagens sobre gangstalking em redes sociais, posso tecer algumas considerações. Geralmente, eles têm mais de 40 anos. Em geral, enfrentaram situações difíceis na vida, como divórcio, racismo, pobreza, demissão ou dificuldades para encontrar emprego, além de experiências de abuso ou trauma na infância. Costumam estar distantes dos familiares e isolados dos vizinhos. Os homens parecem mais propensos a postar sobre suas experiências do que as mulheres. Muitos descrevem sintomas físicos como dores agudas e dor de cabeça, o que me leva a questionar se esses sintomas podem indicar problemas de saúde não diagnosticados. Para eles, no entanto, não há dúvidas: os sintomas são causados por seus perseguidores.

Agência Brasil: No Brasil, há indivíduos-alvo que manifestam a crença de que seus perseguidores são grupos a serviço de forças malignas ou diabólicas que pretendem corrompê-los e desviá-los do caminho do bem. Algumas dessas pessoas sustentam que os indivíduos-alvo são escolhidos por Deus, e daí os esforços para desacreditá-los, adoecê-los e levá-los à morte. O que a senhora pensa sobre isso? Esse aspecto religioso poderia tornar o delírio persecutório mais preocupante?
Liz Johnston: Isso também ocorre nos Estados Unidos – cerca de um terço dos posts no Reddit e no Quora [redes sociais] faz referência a ideias religiosas e aconselha outros TIs a se voltarem para Deus e orarem para conseguirem lidar com o gangstalking . Não vejo esse aspecto como algo tão preocupante, pois estou convencida de que as crenças religiosas são realmente úteis para alguns TIs.

Agência Brasil: No Brasil e nos EUA, há associações legalmente constituídas para promover a crença e defender os interesses dos indivíduos-alvo. Petições, pedido de informações e propostas de leis de iniciativa popular vêm sendo apresentadas a legisladores de diferentes cidades e estados com base na atuação dessas entidades. A senhora conhece a abrangência das organizações norte-americanas? Até que ponto elas podem propagar esse sistema de crenças persecutórias e mobilizar pessoas?
Liz Johnston: Sei que existem vários grupos nacionais nos Estados Unidos e que eles estão organizando petições para legisladores. De fato, com base no pedido de uma dessas associações, o Conselho Municipal de Richmond (CA) aprovou, em 2015, uma resolução que estabelece que o município é uma zona-segura onde cidadãos não podem ser alvo de armas espaciais (saiba mais aqui ).

Agência Brasil: A senhora pode falar um pouco mais sobre seu livro?
Liz Johnston: Enviei uma proposta para a editora Ethics Press, do Reino Unido, que a aceitou. Em seguida, enviei e-mails para todos os autores que publicaram artigos sobre gangstalking e pedi que contribuíssem com capítulos para o livro. A maioria aceitou. No momento, estou editando os rascunhos de capítulos e supervisionando meus alunos de graduação e pós-graduação na escrita dos capítulos de conexão. Pretendo enviar o rascunho final para a editora até meados de setembro. Espero que o livro seja publicado no início de 2025.

É importante procurar ajuda de um profissional capacitado para lidar com situações difíceis a fim de manter a saúde mental. O Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece um serviço de escuta acolhedora e apoio emocional, disponível no telefone 188. Há também o Mapa da Saúde Mental, ferramenta que permite a busca de serviços públicos e gratuitos por localidade.

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