Causas e Efeitos
Livia Camillo, São Paulo, Sp (uol/folhapress) - 06/11/2025 16:45:21 | Foto: Divulgação
A morte de Ayrton Senna durante o Grande Prêmio de San Marino, em Ímola, desencadeou um longo e complexo processo judicial na Itália. O julgamento em primeira instância, que ocorreu entre 1996 e 1999, buscou esclarecer os mistérios por trás do acidente fatal na Curva Tamburello.
Embora o processo tenha terminado sem responsabilização criminal, o trabalho completo e investigativo da promotoria foi eternizado no livro que leva o nome do processo, conhecido como o "O Caso Senna - Toda a Verdade sobre o Julgamento", agora com versão em português.
O jornalista italiano Nicola Santoro, autor da obra, acompanhou de perto as audiências, trazendo à tona os pontos mais polêmicos e as descobertas centrais que permearam a busca pela verdade durante o julgamento.
CAUSAS E EFEITO
Desde os primeiros dias após a tragédia, a coluna de direção do carro, Williams FW16, se tornou o foco das investigações. O Promotor Público Maurizio Passarini concentrou a acusação na tese de que a falha na coluna de direção modificada foi a causa principal do acidente.
"A edição em português do livro é dedicada a ele [Passarini], porque ele fez um trabalho incrível na fase de investigação, colocando todos os documentos e todos os especialistas, consultorias, além de 4 mil páginas do processo no site dele. Foi um grande trabalho por mais de 4 anos, basicamente, desde que a investigação começou", afirma à reportagem.
A coluna de direção, que era originalmente uma peça única, foi modificada antes da corrida de Ímola por ter sido "cortada" e substituída por um tubo de menor diâmetro para dar mais espaço e conforto ao piloto. Essa alteração foi motivada pelas reclamações de Senna sobre a posição de pilotagem inadequada e a dificuldade em lidar com o volante, que era muito estreito.
A acusação sustentou que essa modificação foi mal projetada e executada, resultando na quebra da peça. De fato, a coluna de direção foi encontrada "quebrada" a 225 mm do volante após o impacto. O professor Lorenzini, consultor da acusação, chegou a afirmar que uma solda malfeita foi "certamente" a causa do acidente.
Para muitos especialistas, a foto da coluna de direção caída no chão ao lado do carro indicava esse panorama desde o início, mas Santoro acredita na hipótese de um acidente causado por "múltiplos fatores". O julgamento expôs uma grande confusão na atribuição de funções dentro da equipe Williams, o que dificultou a identificação do responsável técnico.
"A foto de [Angelo] Orsi, da coluna de direção no chão, fora do carro, põe quase todos nessa direção desde os primeiros dias. E o trabalho [de Passarini] clarificou, é correto, a coluna de direção foi a principal causa, mas eu não descartaria algo sincronizado, outras circunstâncias. Minha visão pessoal, que não tem nada a ver com o julgamento em si, é que há semelhanças com acidentes de avião. Há incríveis acontecimentos múltiplos, eventos sincronizados, que não tinham sido contados por ninguém desde aquele momento", afirma Santoro.
O projetista Adrian Newey, inicialmente sob suspeita, afirmou em uma conversa em Monza ter sido Gavin Fisher, então chefe de design da escuderia, o responsável pela modificação na coluna de direção. Essa dificuldade em saber "quem fez o quê e quando" foi um problema central para o caso.
"Honestamente, há algo que ninguém aborda com a seriedade devida: as funções especializadas na Fórmula 1 impedem que o chefe, o gerente ou o diretor controlem de fato as ações dos seus subordinados. Isso acontece porque, muitas vezes, o subordinado sabe mais que o chefe. É um ambiente extremamente técnico, com muitos especialistas, e nem mesmo o diretor de gestão tinha conhecimento de tudo", diz Santoro.
"Então, poderia ter sido algo ocorrendo ao mesmo tempo, em relação à roda de direção e à suspensão, para que ambos pudessem criar essa instabilidade que levou Senna direto para a parede. Aparentemente, esses técnicos foram Fischer e Young, que operaram naquela coluna modificada. O que eu entendo é que, talvez, o processo tenha sido movido contra a pessoa errada no que diz respeito aos aspectos técnicos", acrescentou o jornalista.
CAIXA-PRETA E 'MEMÓRIA RUIM'
Outro ponto polêmico foi a câmera onboard (a "caixa-preta") do carro de Senna. Inicialmente, a existência da gravação de bordo foi negada pela FOCA (Formula One Constructor´s Association). Mais tarde, um vídeo foi divulgado, mas cortado antes do impacto.
As imagens divulgadas paravam instantes antes do impacto, levantando a dúvida sobre o que a Williams ou a FOCA estariam tentando esconder. O autor, com base no que observou no julgamento, acredita que a filmagem completa foi "escondida".
"Em relação ao vídeo, pessoalmente, eu acredito que é possível que o controle da câmera do carro de Senna para o de [Ukyo] Katayama foi uma escolha jornalística, mas não fiquei convencido com as declarações dos testemunhos. Então, acredito que a filmagem existiu, mesmo que não tenha sido revelada no tribunal, diz Santoro.
Além disso, a defesa da Williams foi marcada pela "memória ruim" das testemunhas, em particular a do companheiro de equipe Damon Hill, que testemunhou. Hill, que se tornou campeão mundial após o acidente, "não se lembra" de ter ouvido Senna reclamar do carro, apesar das inúmeras declarações do brasileiro à imprensa sobre os problemas de pilotagem.
"É de conhecimento geral, especialmente no ambiente anglo-saxão, que o automobilismo é perigoso – está escrito até na entrada de Silverstone. A verdade, contudo, é que as testemunhas, principalmente os pilotos Damon Hill e David Coulthard, tinham uma memória muito fraca. Sinceramente, nenhum dos jornalistas presentes acreditou no que eles disseram, pois ainda estavam na ativa na época e acabaram transferindo toda a responsabilidade para a equipe Williams."
DEBATE SOBRE SEGURANÇA
Embora a acusação tenha priorizado a falha da Williams, a segurança da pista de Ímola, especialmente a Curva Tamburello, também foi alvo. A defesa da Williams, por exemplo, sugeriu que a principal causa da saída da pista foram os solavancos na Tamburello. Após o acidente fatal, a pista foi modificada.
Senna, um piloto notoriamente atento à segurança, havia reclamado do asfalto irregular na Tamburello durante testes em março de 1994, antes do GP. Ele observou que o asfalto havia "piorado," com três ou quatro "degraus" que colocavam a aderência à prova. Segundo o ex-piloto Pierluigi Martini, Senna e ele foram ver o ponto e avisaram o diretor de pista Giorgio Poggi, o que resultou em obras de nivelamento no asfalto.
A morte de Senna marcou um divisor de águas na Fórmula 1. Sua tragédia foi a "maior contribuição para mudar totalmente o esporte," impulsionando o movimento por mais segurança. O automobilismo nunca mais foi o mesmo, tornando-se, hoje, um esporte considerado mais seguro, graças às inúmeras medidas implementadas após 1994.
"Foi a última contribuição de um piloto tão grande para mudar totalmente o esporte, porque, após o acidente, a Fórmula 1 nunca mais foi a mesma. Muitas medidas de segurança fazem com quem seja considerado quase um esporte seguro hoje em dia. Então, foi a maior contribuição para a Fórmula 1 ser o que é hoje."
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