Orçamento secreto: Ministério do Desenvolvimento Regional admite que ofícios não estão públicos

Pasta contradiz Rogério Marinho, que alega transparência em repasses do orçamento

Orçamento secreto: Ministério do Desenvolvimento Regional admite que ofícios não estão públicos
Orçamento secreto: Ministério do Desenvolvimento Regional admite que ofícios não estão públicos

Estadão Conteúdo - 15/05/2021 07:23:15 | Foto: Roque de Sá/Agência Senado

O Ministério do Desenvolvimento Regional ( MDR ) admitiu pela primeira vez que os ofícios usados por políticos para destinar verbas do orçamento secreto criado pelas emendas de relator-geral não estão públicos. A admissão contraria o discurso do ministro Rogério Marinho , que insiste em dizer que “não há nada de secreto” na destinação de verbas da sua pasta.

Na narrativa do ministro, repetida pelo presidente Jair Bolsonaro , os documentos estão publicados no site da pasta na internet. O Estadão quis saber onde poderia encontrá-los. A resposta é que não há obrigatoriedade para divulgação. “O MDR destaca que, por se tratar de um instrumento novo, não foi instituída a obrigatoriedade de os ofícios de parlamentares com o direcionamento de recursos estarem disponíveis na plataforma”, afirmou.

O Estadão revelou o conteúdo de mais de 100 desses ofícios reservados nos quais deputados e senadores determinam a destinação de recursos das emendas de relator para obras e compra de máquinas agrícolas, como tratores. Os políticos tratam a verba como “minha cota” e definem, até mesmo, o preço do que deve ser comprado. A divisão dos recursos não foi equânime e desrespeitou veto do próprio presidente Jair Bolsonaro que impedia a interferência do Congresso na aplicação dessas verbas. A divisão das cotas foi feita dentro do Palácio do Planalto, no gabinete do ministro Luiz Eduardo Ramos .

A reportagem do Estadão também insistiu para que o ministério de Rogério Marinho dissesse se há, em algum documento ou página pública, os nomes dos congressistas que indicaram a destinação das verbas. A pasta não respondeu até a conclusão desta edição.

Além de os ofícios não estarem públicos, como admitiu o ministério, não há na maioria dos casos nenhuma outra fonte de informação pública sobre qual político indicou o quê, ao contrário do que acontece com os demais tipos de emendas parlamentares (individuais, de bancada e de comissões). Na plataforma +Brasil, criada pelo governo para disponibilizar dados sobre convênios, a única informação disponível sobre a destinação das verbas RP 9 é o dado de que se trata de uma “emenda de relator”, sem mais detalhes.

No dia 7 de abril, a reportagem solicitou ao ministério, por meio de Lei de Acesso à Informação, “todos os documentos de autoria de deputados federais e senadores que foram encaminhadas ao ministério com indicações de propostas para celebração de convênios e contratos de repasse nos últimos doze meses”.

A assessoria de Marinho considerou o pedido “desproporcional”. “Estima-se que o tempo de geração de PDF é de aproximadamente 5 minutos, que neste caso representariam 5.785 minutos de trabalho ou 96,4 horas de mão de obra dos agentes públicos desta Pasta para atendimento a um único pedido de informação”, justificou. Mesmo depois de recurso, a pasta não liberou o acesso aos ofícios.

Em conversa com apoiadores na terça-feira passada, o presidente Jair Bolsonaro negou a existência do orçamento secreto. “Como o Orçamento foi aprovado, discutido durante meses e agora apareceu R$ 3 bilhões? Só os canalhas do Estado de S. Paulo para escreverem isso”, disse.

Em entrevistas sobre o assunto, Marinho também costuma argumentar que o fato de o Orçamento Geral da União ser votado pelo Congresso a cada ano significaria que não há nada de secreto sobre os acordos políticos para destinação das verbas RP 9 – o que não é verdade.

Do total de R$ 3 bilhões indicados, pouco menos de R$ 1 bilhão estão cobertos por algum tipo de informação disponível no site do Ministério. Sobre os R$ 2 bilhões restantes, não há qualquer informação sobre quem direcionou as verbas. O mesmo acontece com os R$ 17,1 bilhões restantes das emendas RP 9 de 2020, inclusive em outros ministérios.

Versões

Ao longo da última semana, o Ministério do Desenvolvimento Regional mudou de versão algumas vezes sobre o sigilo dos documentos relacionados às emendas de relator-geral (RP 9). Na quarta-feira, por exemplo, a pasta disse que “os documentos e ofícios referentes aos convênios firmados pelo MDR estão disponíveis na Plataforma Mais Brasil”, versão que seria negada pela própria pasta mais adiante.

Em outros momentos, o ministério disse que “os documentos exigidos pela legislação para a aprovação dos instrumentos (convênios) são disponibilizados na plataforma Mais Brasil de forma pública. Os documentos disponíveis no âmbito da Pasta são os mesmos inseridos na plataforma”. Como os ofícios de deputados e senadores destinando dinheiro são oriundos de negociações políticas, não há qualquer exigência legal de que eles sejam enviados.

Senadores também alegaram que não poderiam divulgar os documentos alegando “risco à segurança do Estado” e até mesmo à “segurança da família”.

João Gabriel de Lima: 'Político que age por baixo do pano comete crime de lesa-democracia'

O rio turvo dos crimes de lesa-democracia

A democracia se alimenta da confiança entre eleitores e eleitos. Sem isso, se deteriora

Existem pelo menos duas coisas em comum entre a propina paga por empresas de ônibus no caso Celso Daniel, o acerto de R$ 2 milhões entre Joesley Batista e Aécio Neves e as verbas que Jair Bolsonaro usou para comprar parlamentares do Centrão , no caso revelado em furo de reportagem do Estadão.

A primeira é que nos três episódios – que diferem no tipo de enquadramento em categorias jurídicas – representantes escolhidos pelo povo agiram às escondidas. A democracia, por definição, é o império da transparência. Ela se alimenta da confiança entre eleitores e eleitos. Sem isso, se deteriora. Um político que age por baixo do pano comete um crime de lesa-democracia.

Para repassar verbas aos parlamentares dispostos a vender apoio, o governo federal usou a “emenda do relator”. Trata-se de uma figura jurídica que havia sido abolida em 1993, por estar na raiz do escândalo dos “ anões do Orçamento ”, e que foi recriada no ano passado. Em entrevista ao Estadão, o economista Gil Castello Branco, especialista em contas públicas, explicou por que tal dispositivo é nocivo à democracia. Ele possibilita, segundo Castello Branco, que emendas parlamentares sejam colocadas numa espécie de caixa-preta , dificultando seu acompanhamento e rastreamento.

Democracia não é só cumprir regimentos. Para o filósofo Renato Janine Ribeiro, ela vai muito além. Implica, como se disse acima, transparência obsessiva. É preciso também que as verbas governamentais sejam destinadas a obras que cumpram função pública. Janine foi ministro da Educação, é professor de Ética e autor do livro A Boa Política , lançado pela Companhia das Letras. Ele fala sobre democracia no minipodcast da semana.

A segunda coisa em comum entre os malfeitos petista, tucano e bolsonarista é que, mesmo agindo no escurinho da má política, seus protagonistas deixaram rastros – e foram apanhados.

Parte da propina paga à prefeitura de Santo André foi depositada no extinto Banespa, num caso curioso de corrupção com extrato bancário. Joesley gravou sua conversa com Aécio, e entregou depois o áudio às autoridades. Já os “anões” do “bolsolão”, nome com o qual o episódio se popularizou nas redes sociais, solicitaram o dinheiro por ofício.

Nos textos, pouco se fala sobre a natureza das obras, sua função pública ou justificativas técnicas. Em vez disso, leem-se expressões que revelam a combinação por baixo do pano: “minha cota”, “fui contemplado”, “recursos a mim destinados”.

A série de reportagens, de autoria de Breno Pires, mostrou que alguns parlamentares se negaram a apresentar os ofícios solicitados pela Lei da Transparência. Houve quem alegasse “razões de segurança de Estado”. Como se pretendessem defender o Brasil de uma suposta invasão externa usando um exército Brancaleone de tratores superfaturados.

As reportagens mostraram também que um dos maiores beneficiários das verbas destinadas via Codevasf, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, foi o Amapá do senador Davi Alcolumbre . O Amapá é famoso pelo rio Oiapoque, um dos marcos do norte geográfico brasileiro. O rio São Francisco, no entanto, não passa por lá.

Exaltado por Cartola e Carlos Cachaça num samba-enredo antológico, o São Francisco cumpre funções essenciais de transporte e fornecimento de energia. Já o rio dos crimes de lesa-democracia, como um esgoto, é sempre subterrâneo. A missão do jornalismo é trazer luz às suas águas turvas.

Para saber mais

Minipodcast com Renato Janine Ribeiro

Reportagem do Estadão sobre o Orçamento Secreto

Reportagem do Estadão sobre a Codevasf

Reportagem do Estadão sobre senadores que não abriram seus ofícios

Artigo no Estadão de Felipe Salto, especialista em orçamento

Análise de Gil Castello Branco, do site Contas Abertas

* ESCRITOR, PROFESSOR DA FAAP E DOUTORANDO EM CIÊNCIA POLÍTICA NA UNIVERSIDADE DE LISBOA

E-MAIL: JOAOGABRIELSANTANADELIMA@GMAIL.COM

TWITTER: @JOAOGABRIELDELI

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