A obra de Warchavchik é pouco conhecida do grande público
Francesca Angiolillo, São Paulo, Sp (folhapress) - 14/11/2025 10:19:58 | Foto: “Casa Modernista da Rua Itápolis”, de Gregori Warchavchik. Reprodução
A elite de São Paulo ainda se recuperava do pasmo com que recebera, três anos antes, a Semana de Arte Moderna de 1922. Na ocasião, os arautos da vanguarda foram vaiados sobre o palco do Theatro Municipal. Mas em nenhum momento sublinharam a contradição entre suas premissas e o rebuscado estilo eclético do recinto.
O papel de questionar o lugar dessa arquitetura nos novos tempos caberia a um estrangeiro desembarcado no Brasil só depois do festim, Gregori Warchavchik. No domingo, 1º de novembro de 1925, ele publicaria, no diário carioca Correio da Manhã um manifesto contra a arquitetura "de estilo".
No centenário do artigo, intitulado "Acerca da arquitetura moderna", algumas obras de Warchavchik em São Paulo ainda dão testemunho do que ele pregava. A maioria, contudo, foi modificada ou até desfigurada ao longo dos anos.
Para José Lira, a obra de Warchavchik é pouco conhecida do grande público. "Certos edifícios modernistas, como o Copan, as obras de Niemeyer em geral, mereceram mais essa identificação", diz o professor de história da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo, autor de um estudo importante sobre o arquiteto.
Lira destaca, no entanto, que o manifesto de 1925 tem interesse em si. Primeiro, por ter sido publicado num momento em que a busca por uma identidade nacional, na esteira das comemorações do centenário da Independência, apontava para o neocolonial como sucessor do eclético. Com o texto, Warchavchik adentra o cenário trazendo "uma boa-nova, o conceito de que o passado acabou".
"A nossa compreensão de beleza, as nossas exigências quanto à mesma, fazem parte da ideologia humana e evoluem incessantemente com ela, o que faz com que cada época histórica tenha sua lógica de beleza", iniciava, com cautela, antes de partir para demolir os enfeites artísticos que matavam a arte, comparando o tempo todo casa e máquina, como defendia o franco-suíço Le Corbusier, papa do movimento.
Com o texto, Warchavchik, nascido em 1896 em Odessa -na Ucrânia, embora se reivindicasse russo-, formado em Roma e desembarcado em Santos em 1923 para ficar um ano, se tornou o responsável por introduzir o moderno no debate da arquitetura brasileira.
E o faria, também, na prática, ao construir, em 1927, na Vila Mariana, bairro da zona sul paulistana, a primeira residência a seguir aqueles conceitos no país.
Ele fez o projeto na rua Santa Cruz para viver com sua esposa. Mina era como ele judia, mas já nascida no Brasil, em uma família lituana enriquecida no ramo do papel, os Klabin.
Sua irmã, Jenny, era casada com outro lituano, o pintor Lasar Segall. O lar deles, ali perto, hoje museu do artista, também foi obra de Warchavchik, bem como uma fieira de casas de aluguel na mesma rua Berta.
Estas se encontram menos mudadas que o museu -e este, muito mais preservado do que a Casa Modernista, como ficou conhecida, pelo papel inaugural, a residência da rua Santa Cruz.
O imóvel foi adquirido pelo estado após um movimento de bairro que em 1983 impediu sua derrubada e demandou a manutenção da área verde -fruto do trabalho também inédito, com espécies nativas, da mulher do arquiteto.
O uso da casa, porém, foi cedido ao município. Ela está, assim, sob gestão do Museu da Cidade e do Parque Modernista, da secretaria estadual do Verde e Meio Ambiente. A guarda compartilhada acabou trazendo dificuldades, explica o arquiteto Marcos Cartum.
Ele é diretor do Museu da Cidade e reconhece o estado penoso da construção. Dois anos de indefinição fizeram com que a prefeitura freasse planos de restauro, diz.
Isso porque a secretaria estadual de Cultura acalentou a ideia de retomar o imóvel para lá instalar o Museu da Casa Brasileira, despejado de sua sede original. Só após oficializada a desistência, no ano passado, a prefeitura voltou a fazer planos.
Cartum afirma estar "muito otimista" e esperar que o assunto se resolva no ano que vem. Diz ainda que tem equipe constante de manutenção e segurança e que "o processo de deterioração está contido".
O arquiteto tem seu escritório no térreo do edifício Mina Klabin, projeto de Warchavchik na alameda Barão de Limeira, região central de São Paulo.
O prédio, de 1939, traz, nas varandas curvas e em detalhes como o respiro do elevador e os números das portas, ares do art-déco, movimento paralelo ao modernismo. Muitos veem nesse tipo de concessão um retrocesso do russo, que teria abandonado o papel de ponta-de-lança.
"Na minha leitura, Warchavchik é fundamentalmente o introdutor da arquitetura modernista no Brasil. Faço distinção entre arquitetura modernista e moderna", frisa Cartum. A primeira, diz, "expressa o ideário da era da máquina"; a segunda é a que tornou o Brasil uma potência arquitetônica, a partir de Lucio Costa e Niemeyer.
O Mina, afirma, foi feito com um objetivo muito comercial, de aluguel, e por isso não ostenta um "modernismo radical". Hoje impecável, foi uma ruína por anos, como conta Carlos Warchavchik, neto de Gregori e também arquiteto. Foi preciso refazer até as fundações. Carlos se encarregou de recuperar o prédio e mantém lá um apartamento alugado.
Nele moram Marina Canhadas e Joaquín Gak, arquitetos e professores. Canhadas mostra os tacos na área social, o granilite na cozinha, os detalhes das escadas.
O elevador falha, mas o Mina tem pé-direito alto, espaços amplos e um jardim escondido. São vantagens de um espaço bem pensado, que eles acharam andando na rua em 2019. Primeiro moraram em um dos estúdios dos fundos; um ano e meio depois, se mudaram para o apartamento de dois quartos, da frente.
Canhadas acha que o relativo silêncio em torno do pioneiro pode ter a ver com ele não ter feito obras públicas. O mais próximo disso são construções para clubes, entre o fim dos anos 1940 e início dos 1950 -a sede social do Club Athletico Paulistano, o salão de festas do Esporte Clube Pinheiros e um ginásio para A Hebraica.
Dos três, só o primeiro pôde ser visitado. Ana Paula Fernandes, historiadora responsável pelo Centro Pró-Memória do Paulistano, conduz o passeio pelo espaço e explica as modificações ocorridas.
Estava previsto um ginásio -não executado e feito depois, em outra parte, por um jovem Paulo Mendes da Rocha-, além da piscina social, que segue lá. Entre o projeto e a inauguração, em 1957, foi quase uma década de trabalho.
A sede perdeu as varandas para a piscina. Outras ampliações comeram um jardim e um mezanino, e foi eliminada a escada que dava no bar térreo -que agora está em reforma, já sob as exigências do tombamento municipal, de 2018. Apesar disso, o espírito permanece no volume geral, como as rampas e a marquise ondulada da entrada.
Destino diferente teve o salão do Pinheiros. Mutilado pela abertura da avenida Faria Lima, nos anos 1960, perdeu sua marquise de acesso. A descaracterização foi utilizada pela associação como argumento contra o tombamento do espaço, que pretendia substituir por novo prédio. Uma ação civil pública pedindo a proteção foi aberta e ainda corre na Justiça paulista.
O clube não recebeu a repórter, mas enviou uma nota sobre o salão, dizendo que ele continua em uso para eventos como a tradicional Feira Escandinava e que não há obras previstas para o local.
Fato é que Warchavchik se tornou notório pelas casas. O Pacaembu guarda dois exemplos preservados, a da rua Bahia e a da Itápolis, ambas de 1930.
A segunda foi restaurada também por Carlos. Ela foi erguida para Gregori, Mina e os dois filhos morarem durante a ampliação da casa da rua Santa Cruz, reocupada por eles em 1935.
Foi também a sede da "Exposição de uma Casa Modernista", na qual o arquiteto instalou obras de Segall, Brecheret, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, além de seus próprios móveis. Fez de seu lar o mostruário do que era uma "máquina de morar".
Para José Lira, atos assim reafirmam o papel de ativista e agitador cultural de Warchavchik, que pavimentou o caminho para os nomes reconhecidos como a grande arquitetura brasileira.
O patrimônio moderno guarda uma história a proteger de ameaças que "vêm de uma discussão muito mesquinha, pautada pelo mercado imobiliário", diz. Mas o apagamento vai além. É preciso "prestar mais atenção a uma produção mais ordinária, contemporânea de Warchavchik, uma arquitetura anônima, que não tem nada de modernista e também está sendo devastada".
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