Voz e luta contra o racismo

O promotor de Justiça Libânio Rodrigues defende que o Ministério Público pode ser um instrumento para combater problemas raciais. Com carreira de sucesso, ele se vê como exceção

Voz e luta contra o racismo
Voz e luta contra o racismo

Alexandre De Paula-correio Braziliense - 25/11/2019 07:26:42 | Foto: Correio Braziliense

"Raramente passa pelo imaginário das pessoas que o promotor de Justiça possa ser um cara negro. Eu faço questão de ocupar esses cargos, porque, naturalmente, as pessoas não estão acostumadas a ver os negros nesses lugares. Parece que não é para o negro exercer aquela atividade"


Por brincadeira, quatro homens começam a correr. É Ipanema, Posto 7, Rio de Janeiro. Três dos caras são brancos. O outro, negro. Nenhum deles roubou nada. Nenhum deles cometeu qualquer crime. Mas um, no fim de tudo, vai acabar morto porque foi confundido com um bandido. A cena imaginária é narrada pelo promotor de Justiça Libânio Rodrigues, 53 anos, a outros colegas do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) em uma discussão sobre política de cotas. Seria ele o homem negro na praia carioca e, por isso, levanta questão: “Quem vocês acham que morreria?”.



É esse o nível de gravidade e crueldade do racismo no Brasil, afirma Libânio. O problema vai além das injúrias e ofensas e torna-se também uma questão de sobrevivência, de tentar, mesmo sem dever nada, permanecer vivo dia a dia. Com uma trajetória de sucesso dentro do Judiciário e do Ministério Público, ele se vê como exceção e, ao mesmo tempo, como prova de que o sistema é, sim, muito racista.


Libânio é brasiliense. Criou-se em Taguatinga. Filho de pais baianos que chegaram à capital federal quando Brasília era mais poeira do que concreto, o promotor fala com orgulho da origem humilde, da trajetória do pai dentro do serviço público e se lembra dos anos em que moraram em um barraco de madeira na região administrativa. “O meu pai entrou no cargo de serviços gerais do TFR (o extinto Tribunal Federal de Recursos). No começo, morávamos em um barraco de madeira. Com o tempo, ele conseguiu construir uma casa e alugou o barraco. Foi isso que ajudou a ter recursos para sustentar a família bem”, conta.


O direito nunca fez parte dos planos dele. Os testes vocacionais o direcionavam para a agronomia. Ele tentou, algumas vezes, passar no vestibular para o curso. “Meu pai viu que eu estava me dedicando muito e perguntou por que eu não fazia direito.” A princípio, a ideia soou mal: “Eu andava de bermuda e camiseta. Via meu pai chegando de terno do trabalho todos os dias e não queria aquilo para mim”, diz.


O pai pagou a inscrição para o vestibular em duas universidades privadas. E Libânio passou. Escolheu a instituição mais perto de casa e decidiu começar o curso enquanto continuava a tentar uma vaga em agronomia. Mas, pouco tempo depois, percebeu que gostava dos assuntos jurídicos. Dedicado, recebeu elogios de professores importantes, como o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, e deixou de lado o interesse por agronomia. “Hoje, sei que não daria certo. Sou muito urbano, apesar de gostar de terra e desse outro lado.” No direito, fez grandes amigos, como o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa.

"Digo às minhas duas filhas: o serviço público é pertencente a vocês. Esses locais bacanas, caros ou simples, em todos eles vocês podem e devem entrar com a cabeça erguida"


Profissional
Em 1989, Libânio passou em um concurso para o recém-criado Superior Tribunal de Justiça (STJ). Entrou como atendente judiciário. Depois, mudou para o cargo de assistente de datilografia. Na função, encontrou, enquanto digitava um documento, um erro do ministro para o qual estava designado. Ao alertar o chefe, recebeu autorização para corrigir o problema e conquistou confiança. Tempos depois, tornou-se assessor.


Em 1994, foi aprovado para uma vaga no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Na instituição, encontrou-se. “Eu não tinha essa ideia, essa vontade de querer ser alguém no direito, mas descobri que o Ministério Público é o que eu gosto de fazer, é a minha profissão”, diz. “Ser do Ministério Público, faz parte do meu jeito de ser. Eu nunca tive uma semana de pensar: ‘Que saco ter de ir ao trabalho’. No MP, se você for atuante, vai conseguir fazer várias atividades que são importantes para o sistema de Justiça e para a sociedade”, acrescenta.


No MP, Libânio teve uma trajetória de destaque. Ocupou cargos importantes como a direção-geral, na gestão de Eunice Carvalhido, e atuou em casos emblemáticos, como o que desmantelou o esquema de corrupção no Instituto Candango de Solidariedade (ICS). No ano passado, candidatou-se a procurador-geral de Justiça, conquistou o apoio de 80 colegas, mas não se elegeu. Atualmente, é ouvidor do órgão.


Libânio também foi assessor de Políticas Institucionais durante a gestão de Leonardo Bandarra. Assim como outros integrantes do MPDFT, ele afastou-se de Bandarra após as denúncias contra o ex-procurador-geral no âmbito da Operação Caixa de Pandora. Bandarra, segundo Libânio, nunca se explicou aos promotores que faziam parte da equipe e jamais apresentou a própria versão dos fatos a eles.

"Eu não tinha essa ideia, essa vontade de querer ser alguém no direito, mas descobri que o Ministério Público é o que eu gosto de fazer, é a minha profissão"


Pertencimento
Mesmo como promotor de Justiça, Libânio conta que continuou sendo alvo de racismo. Abordagens policiais e pequenas situações cotidianas não deixaram de acontecer. Ele cita um caso que explicita a questão. Durante muito tempo, conversou por telefone com um homem que queria apresentar uma denúncia. “O senhor foi me apresentar os documentos pessoalmente e, quando chegou à minha sala, ele me olhou e saiu. Disse à secretária que queria falar com o promotor Libânio”, recorda-se.


O olhar de espanto se repetiu várias outras vezes, segundo o promotor. No Tribunal, foram vários momentos assim. “Raramente passa pelo imaginário das pessoas que o promotor de Justiça possa ser um cara negro. Eu faço questão de ocupar esses cargos, porque, naturalmente, as pessoas não estão acostumadas a ver os negros nesses lugares. Parece que não é para o negro exercer aquela atividade”, observa.


Para Libânio, o racismo no Brasil tira do negro a sensação de pertencer à sociedade. “Digo às minhas duas filhas: o serviço público é pertencente a vocês. Esses locais bacanas, caros ou simples, em todos eles vocês podem e devem entrar com a cabeça erguida.”

Libânio ocupa posição para amplificar o debate sobre os problemas raciais e trazer essas situações à tona. A voz e o Ministério Público, acredita ele, são uma arma para lutar contra o inimigo cruel e muito presente que é o racismo.


Especial
Para marcar o Mês da Consciência Negra, a série Histórias de consciência é publicada ao longo de novembro e presta homenagem a mulheres e homens negros que ajudam a construir uma Brasília justa, tolerante e plural. Todos os perfis deste especial e outras matérias sobre o tema podem ser lidos no site www.correiobraziliense.com.br/ historiasdeconsciencia


"Ser do Ministério Público faz parte do meu jeito de ser. Eu nunca tive uma semana de pensar: ‘Que saco ter de ir ao trabalho’. No MP, se você for atuante, vai conseguir fazer várias atividades que são importantes para o sistema de Justiça e para a sociedade”

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