10 anos do surto de Zika que mudou a história da saúde materno e infantil no País

Fiocruz relembra trajetória da luta compartilhada por ciência, famílias e política.

10 anos do surto de Zika que mudou a história da saúde materno e infantil no País
10 anos do surto de Zika que mudou a história da saúde materno e infantil no País

Agência Gov | Via Fiocruz - 25/06/2025 09:32:03 | Foto: Unicef

Dez anos após o início do surto de Zika no Brasil, profissionais do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) relembram histórias de enfrentamento e cuidado.

Referência nacional e internacional na produção de conhecimento, cuidado e formulação de políticas públicas voltadas às gestantes infectadas e às crianças com a Síndrome Congênita do Vírus Zika (SVZ), o IFF/Fiocruz, desde os primeiros casos, em 2015, até os mais recentes estudos sobre as sequelas e o acompanhamento dessas famílias, tem desempenhado um papel decisivo na resposta à emergência sanitária e na construção de um legado científico e assistencial.

O início do surto e o papel decisivo da ciência no Brasil
Foi entre 2015 e 2016 que o Brasil viu emergir uma virose que, à primeira vista, se assemelhava à dengue, mas não era. Causada pelo vírus Zika e transmitida pelo mosquito Aedes Aegypti , a infecção rapidamente despertou a atenção da comunidade científica ao ser associada ao aumento de casos de microcefalia, especialmente em estados do Nordeste como Pernambuco e Paraíba. “Pediatras começaram a perceber o aumento de crianças com microcefalia e outros quadros neurológicos graves. A associação com o Zika foi sendo investigada a partir dos relatos de gestantes com febre ou manchas vermelhas na pele durante a gravidez”, relembra a neonatologista e pesquisadora do IFF/Fiocruz, Maria Elisabeth Lopes Moreira.

A partir dessas observações, estudos clínicos foram conduzidos em várias frentes, dentro e fora do Brasil. “Com o tempo, conseguimos estabelecer que, de fato, o vírus Zika era responsável por uma série de complicações neurológicas em recém-nascidos, o que levou à definição da SVZ”, afirma o obstetra do IFF/Fiocruz, José Paulo Pereira Júnior. Um dos marcos dessa descoberta foi a identificação do vírus no tecido cerebral de um feto com microcefalia, cujo caso envolvia uma brasileira residente no exterior.

Conforme explicado por Maria Elisabeth Lopes Moreira, no IFF/Fiocruz, o enfrentamento começou com a chegada de gestantes encaminhadas pelo Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), onde a infectologista Patrícia Brasil detectava a presença de Zika em mulheres com quadros febris agudos. “Essas grávidas foram acompanhadas por nós, e logo começamos a observar casos de microcefalia entre os bebês. De 147 gestantes acompanhadas, quatro tiveram filhos com microcefalia”, detalha Maria Elisabeth.

A atuação do IFF/Fiocruz foi decisiva desde os primeiros momentos. Como unidade materno-infantil da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o instituto assumiu a linha de frente no cuidado das gestantes e crianças afetadas, criando uma coorte de acompanhamento clínico e epidemiológico com foco também em pesquisa, que possibilitou a qualificação da assistência. “A pesquisa qualifica a assistência — essa era a nossa máxima. E foi graças a isso que conseguimos atrair recursos nacionais e internacionais para oferecer o melhor cuidado possível”, destaca Maria Elisabeth.

Para além do atendimento ambulatorial no Rio de Janeiro, o Instituto também desempenhou papel formador, desenvolvendo cursos presenciais e a distância para capacitar profissionais de reabilitação de outras regiões do país. “Infelizmente, com mudanças políticas, muitos desses centros estaduais foram descontinuados, e o cuidado foi interrompido. Profissionais capacitados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) acabaram absorvidos pela iniciativa privada”, lamenta Maria Elisabeth.

O pediatra do Instituto, José Augusto Alves de Britto, também relembra. “O desafio foi construir uma resposta estruturada diante de um cenário de tantas incertezas. Tivemos que agir com rapidez para organizar fluxos de atendimento, formar equipes multiprofissionais e integrar assistência, vigilância e pesquisa. Foi um esforço coletivo, com muito compromisso ético, técnico e humano, para garantir o cuidado necessário às famílias afetadas por essa epidemia inédita”.

Mesmo uma década depois, ainda há muitas perguntas sem resposta sobre o Zika, especialmente em relação à infecção assintomática durante a gestação. “Até hoje há crianças que nasceram sem sinais visíveis, mas que mais tarde apresentaram atrasos no desenvolvimento. Ainda não temos um teste sorológico específico e confiável para detectar Zika na gravidez, o que dificulta tanto o diagnóstico como a vigilância em saúde”, comenta Maria Elisabeth Lopez Moreira.

A consolidação do IFF/Fiocruz como referência na resposta à SVZ
A visibilidade global do surto de Zika veio com o alerta da Organização Mundial da Saúde (OMS), que classificou a epidemia como uma “Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional” em fevereiro de 2016. O IFF/Fiocruz teve papel crucial com a sistematização e divulgação de evidências clínicas e epidemiológicas sobre a SVZ. “Os primeiros estudos eram ainda séries de casos, com dificuldades metodológicas, pois não havia como estabelecer um grupo controle confiável. Muitas gestantes poderiam ter tido Zika de forma assintomática, o que inviabilizava essa comparação”, explica a neonatologista Maria Elisabeth.

Apesar dessas limitações iniciais, o Instituto liderou pesquisas fundamentais para compreender as implicações da infecção no desenvolvimento infantil. Parcerias internacionais — com instituições como a London School of Hygiene & Tropical Medicine , a Universidade da Califórnia (UCLA) e, posteriormente, com o National Institutes of Health (NIH), nos Estados Unidos — foram fundamentais para avançar no acompanhamento de longo prazo das crianças expostas ao vírus durante a gestação. “Com pequenos financiamentos, conseguimos estudar crescimento, audição, visão e desenvolvimento neuropsicomotor dessas crianças no primeiro ano de vida. Foi um passo essencial para entender a complexidade da síndrome”, relata Maria Elisabeth.

Mais tarde, com a parceria firmada com o NIH, foi possível estruturar uma coorte robusta e prospectiva, acompanhando gestantes desde o início da gravidez até os três anos de vida dos filhos. “Esse sim foi um estudo epidemiologicamente mais forte, com exames periódicos nas mães para detectar o vírus. Mas, infelizmente, quando ele foi implementado, a epidemia já estava em declínio e tivemos poucos casos confirmados. Ainda assim, foi importante para reforçar evidências de causalidade e aprimorar o cuidado durante a gestação”, destaca Maria Elisabeth.

Segundo Maria Elisabeth, a linha de cuidado especializada do IFF/Fiocruz, para crianças com Síndrome Congênita do Zika foi fundamentado na integração entre pesquisa e assistência clínica, com contratação de profissionais especializados para tratar complicações complexas, como epilepsia de difícil controle, além do acompanhamento do desenvolvimento visual e auditivo das crianças. “As consultas sistematizadas proporcionaram que essas crianças tivessem suas necessidades atendidas, ainda que em alguns casos fosse preciso encaminhá-las para serviços de reabilitação do sistema público de saúde. Nossos profissionais capacitaram equipes em centros estaduais para ampliar o atendimento de forma qualificada”, explica.

A produção científica também foi intensa e fundamental para a visibilidade do tema. A Lista de Aprendizagem Colaborativa (LAC) coordenada pela instituição, publicou mais de 100 trabalhos que abordaram desde aspectos clínicos e biológicos até as dimensões sociais da epidemia. Maria Elisabeth ressalta que também contaram com investimento do Programa de Incentivo à Pesquisa (PIP), que permitiu a criação de uma turma especializada na SVZ, no Programa de Pós-Graduação Profissional em Saúde da Criança e da Mulher do IFF/Fiocruz (PPGSCM).

A coordenadora do Programa na época, Maria Gomes, destaca que o mestrado foi uma resposta estratégica à emergência sanitária, com enfoque multidisciplinar, envolvendo medicina fetal, neonatologia, genética e ciências sociais. “A formação possibilitou a qualificação de profissionais para enfrentar a complexidade da epidemia, fortalecendo competências para atuar em situações de doenças emergentes e organizando redes de atenção com olhar reflexivo sobre os impactos para as famílias”, pontua Maria Gomes.

Além disso, outro papel central do IFF/Fiocruz foi oferecido na articulação entre pesquisa, assistência e políticas públicas por meio da realização de eventos científicos e cursos voltados ao atendimento das famílias das crianças com SCZ. A assistente social da instituição, Alessandra Gomes Mendes, responsável pela organização dessas atividades desde o início, destaca o ‘Curso de Atualização Intersetorial’ promovido em 2019, que reuniu profissionais de saúde, educação e assistência social, além da participação ativa de associações como a Associação de Famílias Vítimas da Síndrome Congênita do Zika Virus e outras Neuropatias (Lótus).

“Esses encontros fomentaram a troca de conhecimentos e o fortalecimento da rede de atendimento, ampliando a integração entre diferentes setores”, explica Alessandra. Entre 2020 e 2022, o Instituto ainda liderou o projeto “Intersetorialidade, acesso a políticas públicas e tessituras do cuidado na pós-epidemia”, que aprofundou o diálogo com famílias e gestores, especialmente durante o contexto desafiador da pandemia de Covid-19.

As descobertas
A emergência sanitária abriu caminho para outras importantes descobertas sobre o amplo espectro da síndrome associada à infecção, que vai muito além da microcefalia. Pesquisas coordenadas pelo IFF/Fiocruz foram decisivas para mapear os múltiplos impactos neurológicos, motores, oftalmológicos e urológicos da SVZ, revelando a complexidade do acompanhamento necessário para essas crianças.

Para a neurologista infantil da instituição, Tânia Saad, o cenário apresentado pelo Zika foi "uma catástrofe que nos forçou a acelerar o conhecimento e a colaboração interdisciplinar". Ela recorda o momento em 2015, quando começou a identificar casos. "Era o fim de mais um longo dia de ambulatório quando um militar da Marinha pediu consulta para seu filho recém-nascido, com uma cabeça muito pequena, mas que aparentemente era saudável. Logo percebemos que esse não era um caso isolado". O que chamou a atenção foi a gravidade das sequelas neurológicas. "Algumas crianças apresentavam perímetro cefálico de apenas 16 cm, menos da metade do esperado. Isso jamais tinha sido visto antes", explica Tânia.

Estudos de imagem revelaram múltiplas calcificações cerebrais e malformações que comprometiam severamente o desenvolvimento neurológico dessas crianças. Tânia destaca que "o vírus atacou os neurônios motores primários, essenciais para o movimento e a cognição, o que gerou um quadro muito mais intenso do que outras formas de paralisia cerebral. "As convulsões, muitas vezes graves, foram outro desafio: observamos crises com padrões eletrográficos praticamente únicos, como a hipsarritmia (padrão de atividade elétrica cerebral desorganizado), e a necessidade de tratamentos complexos com múltiplos anticonvulsivantes".

Nesse contexto, o uso do Levetiracetam, medicamento antiepiléptico até então pouco utilizado no Brasil, foi incorporado para controlar essas convulsões. "Também começamos a utilizar o canabidiol para minimizar os episódios, uma mudança importante no manejo clínico," diz Tânia. Além disso, o desenvolvimento de medicamentos tópicos para aliviar a espasticidade trouxe alívio significativo. "Esses avanços só foram possíveis graças a um trabalho interdisciplinar, envolvendo neurologia, urologia, oftalmologia, ortopedia, fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia e serviço social".

A oftalmologista e pesquisadora do IFF/Fiocruz, Andrea Zin destaca que a exposição ao Zika vírus durante a gestação causa anomalias oculares graves, como Atrofia Coriorretiniana, Microftalmia e Coloboma, que podem levar à cegueira em casos mais severos. “A prática clínica mudou radicalmente após essas descobertas. Passamos a realizar triagens oftalmológicas detalhadas já no nascimento, com acompanhamento contínuo para detectar precocemente os problemas visuais e aplicar intervenções como o uso de óculos”.

Andrea enfatiza também a importância da educação das famílias. "O suporte contínuo às famílias é fundamental para o desenvolvimento das crianças, já que muitos sinais visuais só aparecem com o tempo. Essas crianças nos ensinaram a olhar o desenvolvimento visual de forma mais sensível e integrada".

Na área urológica, a pesquisadora da instituição, Lucia Monteiro explica que "a bexiga neurogênica foi a principal sequela identificada nas crianças com SZV, com uma prevalência de quase 62% nos pacientes estudados".

Lucia Monteiro detalha a importância do diagnóstico precoce por meio da avaliação urodinâmica, padrão ouro para identificar essa condição. "Detectar a bexiga neurogênica permite iniciar tratamentos que previnem complicações graves, como infecções urinárias e lesão renal”.

O projeto coordenado pelo IFF/Fiocruz em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Departamento de Ciência e Tecnologia (DECIT) fortaleceu a capacidade do SUS, qualificando centros em várias regiões do Brasil para oferecer atendimento especializado. "Esse pioneirismo mundial não só ampliou o conhecimento científico, como também contribuiu para melhorar a assistência hospitalar e a qualidade de vida das crianças", afirma Lucia. E complementa: "Sabemos que o acompanhamento urológico constante é fundamental para garantir uma vida com mais dignidade e menos complicações para essas crianças".

A neonatologista e pesquisadora Maria Elisabeth Lopes Moreira reforça a necessidade do acompanhamento longitudinal. "Muitas manifestações tardias só puderam ser identificadas com o passar dos anos, o que torna essencial o monitoramento contínuo dessas crianças”. Ela destaca que mesmo após uma década da emergência, "muitas famílias ainda enfrentam dificuldades para acessar a reabilitação motora, fonoaudiológica e a inclusão escolar adequada, revelando lacunas que precisam ser urgentemente superadas".

Tânia Saad reflete sobre os aprendizados trazidos pela epidemia do Zika. "Crescemos em tempos de crise, mas é fundamental que continuemos a investir em prevenção e pesquisa mesmo quando não estamos em emergência. O mundo se uniu para desenvolver vacinas rapidamente durante a pandemia de Covid-19, mostrando que somos capazes quando há vontade política e científica", conclui.

Apoio às famílias e aos profissionais
A resposta à epidemia do vírus Zika ultrapassou a esfera clínica, evidenciando-se também como uma questão de cuidado, escuta e garantia de direitos. Diante desse cenário, IFF/Fiocruz investiu em múltiplas frentes para apoiar as famílias e fortalecer a atuação dos profissionais de saúde: desde a produção de materiais informativos, como o Guia Prático de Direitos para profissionais de saúde e famílias de crianças com Zika vírus , até ações de formação, articulação intersetorial e acompanhamento direto às famílias.

Alessandra Gomes Mendes, uma das responsáveis pelo Guia, relata que o documento nasceu da urgência de apoiar essas famílias no acesso aos seus direitos e à rede de atendimento, com informações práticas sobre gratuidade no transporte, reabilitação, benefícios assistenciais, justiça e muito mais. “Era urgente construir um instrumento que potencializasse essa luta cotidiana”, afirma, ressaltando ainda que, o material só foi possível graças à escuta ativa e à construção coletiva. “O Guia é fruto de muitas vozes. É o resultado de uma escuta atenta às mães e aos profissionais que atuam diretamente com essas crianças e que conhecem de perto as lacunas do sistema”.

A fisioterapeuta Miriam Sá lembra que os profissionais também enfrentaram (e ainda enfrentam) grandes desafios, desde a ausência de protocolos de intervenção precoce nos municípios até a atual escassez de vagas e especialistas nos centros de reabilitação. “Hoje, a maioria das crianças com SCZ vive com múltiplas deficiências e demanda um cuidado contínuo e altamente especializado, que muitas vezes só é acessado por meio da judicialização”, explica.

Miriam observa ainda que os esforços da equipe não se limitaram ao atendimento individual. “Sempre trabalhamos para sensibilizar gestores e ampliar a rede de cuidados. Fomos ao Ministério Público (MP), produzimos materiais técnicos e buscamos criar espaços de articulação que promovessem o cuidado de forma mais equânime”, acrescenta.

O papel estratégico da comunicação durante a epidemia
Durante os primeiros meses da epidemia de Zika, especialmente após a confirmação da relação do vírus com casos de microcefalia em recém-nascidos, a Coordenação de Comunicação Social (CCS) da Presidência da Fiocruz assumiu um papel estratégico na resposta institucional à crise. Em um cenário marcado por incertezas científicas e crescente desinformação, a equipe liderada por Elisa Andries estruturou sua atuação para garantir o acesso da população a informações confiáveis, atualizadas e baseadas em evidências.

“Foi a primeira vez que enfrentamos de forma contundente o fenômeno das fake news em saúde”, relembra Elisa. Conforme explicado por ela, enquanto a ciência ainda tentava entender a etiologia da síndrome congênita, boatos e conteúdos falsos se espalhavam com rapidez, exigindo respostas ágeis e responsáveis da comunicação pública. “Era uma doença sem paralelo, e as descobertas científicas aconteciam em paralelo à escalada da epidemia. Isso tornou tudo ainda mais desafiador para nós”.

Diante da emergência, a equipe intensificou o uso das redes sociais – em especial o Facebook, então principal canal digital da Fiocruz – como ponte direta com a sociedade. “Usamos o Facebook para levar informações institucionais, científicas e de saúde pública à população. E vimos um engajamento expressivo: as pessoas queriam se informar, buscavam conteúdos de qualidade”, conta. “Os dados dessa atuação foram sistematizados em um artigo produzido com o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT), intitulado “Zika, Facebook e a Saúde Pública”, que está disponível na Biblioteca Virtual em Saúde da Fiocruz.

Além das redes, a relação com a imprensa também foi decisiva. Elisa destaca como emblemática uma coletiva realizada na véspera do carnaval, em que a Fiocruz compartilhou com a mídia um achado ainda em investigação: a possível transmissão do vírus Zika pela saliva. “Queríamos empoderar as mulheres grávidas. Era nosso dever alertar, mesmo que fosse uma evidência ainda em estudo. Acreditávamos que, com a informação, cada pessoa poderia decidir com mais autonomia como se proteger”, afirma. A coletiva gerou críticas na imprensa, especialmente pelo fato de a transmissão salivar ainda não estar confirmada. “Foi um momento de muita tensão, mas também de aprendizado sobre os limites e as responsabilidades da comunicação em saúde em contextos de incerteza”.

A experiência durante a epidemia de Zika se tornou um marco na história da comunicação da Fiocruz, moldando práticas que seriam novamente acionadas durante a pandemia de Covid-19 anos depois. A atuação da CCS naquele período reforçou a importância de uma comunicação pública comprometida com a ciência, com os direitos das mulheres e com o enfrentamento da desinformação como dimensão fundamental da resposta em saúde.

“Não é força, é sobrevivência”: mães narram desafios
Dez anos após o início da epidemia do vírus Zika, mães de crianças afetadas pela síndrome congênita enfrentam uma dura rotina de desafios, entre a espera por cirurgias essenciais e a luta por um cuidado contínuo que nem sempre está garantido. Nádia Silva, mãe de Lorena (criança com SZV), recorda o impacto do diagnóstico tardio e a sensação de abandono inicial. “Em momento nenhum, ninguém nunca falou sobre Zika”. Só com o acompanhamento no Instituto Fernandes Figueira, onde consegui fazer exames que muitas mães em 2015 não tiveram acesso, encontrei acolhimento e informação. Eu costumo dizer que a Lorena foi rapinha da epidemia, porque já existia o exame”.

Suzana Marques, mãe de Samuel (criança com SZV), reforça a ausência de apoio emocional e a luta cotidiana para garantir terapias essenciais. “Em geral, faltou acolhimento psicológico. Foi como se estivessem dizendo que meu filho estava gripado, mas meu mundo derrubou”.

Mesmo com cirurgias feitas no IFF/Fiocruz, a continuidade do tratamento é um problema. “Minha filha e o Samuel fizeram cirurgia de quadril. Mas como não tiveram fisioterapia depois, o osso está em atrito com a pele. Vai esperar rasgar?”. Comenta Nádia Silva. Ela aponta ainda a dificuldade de acesso a serviços públicos no Rio de Janeiro, agravada pela burocracia e falta de estrutura local, e cobra. “As crianças cresceram, e as demandas aumentaram. A gente continua lutando pela assistência mínima”.

O acolhimento vai além dos cuidados clínicos. O grupo de mães atendido pela Área da Criança Clínica do IFF/Fiocruz promoveu encontros onde essas mulheres puderam expressar suas emoções, partilhar experiências e encontrar força para construir a sua rede, a Associação Lotus. “Aqui (na Lotus) a gente escuta, a gente chora, ri, se diverte. Hoje eu tenho o prazer de fazer parte”, celebra Nádia. Susana corrobora. “Vocês do IFF/Fiocruz foram muito importantes para mim. Tiveram dias que eu só queria chorar, e eu chorei, e fui acolhida. A gente se escuta, se entende. E isso muda tudo”.

Apesar das dificuldades, ambas reforçam a necessidade de um cuidado interdisciplinar e continuado para garantir qualidade de vida às crianças, destacando que ainda falta muito para que o Estado assegure esses direitos. “A sociedade prefere nos rotular de guerreiras para não estender a mão. Não é heroísmo, é necessidade”, diz Nádia. Enquanto isso, a espera por cirurgias ortopédicas e tratamentos adequados persiste, deixando as famílias em uma angústia que mostra que a epidemia do Zika ainda não terminou para elas.

Presente e Futuro: os desafios que permanecem
Em 2025, o Zika vírus já não ocupa as manchetes com a mesma intensidade, mas os desafios continuam presentes: O acompanhamento das crianças, o suporte às famílias e a continuidade das pesquisas seguem como prioridades.

Por outro lado, ao longo desses 10 anos, pode-se afirmar que os avanços do IFF/Fiocruz no acompanhamento das crianças afetadas pela SVZ e o suporte às suas famílias foram significativos. Como explica Maria Elisabeth Lopes Moreira, "contribuímos para a ciência com a descrição do espectro da síndrome, que vai desde a microcefalia grave, com artrogripose, até o desenvolvimento de crianças que nasceram assintomáticas, mas que desenvolveram alguma sequela no momento e no futuro". A neonatologista do Instituto, reforça a importância do acompanhamento contínuo. "Temos que estudar essas crianças a longo prazo para ver o efeito dessa Zika na gravidez em relação à escola, à puberdade e até a reprodução humana posteriormente".

Sobre a possibilidade de contágio pós-nascimento, Maria Elisabeth esclarece que "a criança é um ser em desenvolvimento. O cérebro está crescendo até dois anos de vida... pode ter síndrome congênita, que está relacionada à gestação, mas crianças podem ser afetadas após o nascimento, embora em uma época em que o cérebro não seja tão vulnerável quanto durante a gravidez".

Em relação ao risco de novos surtos, Maria Elisabeth alerta. "A possibilidade com o Aedes Aegypti ainda está aí. O que tem que ser feito, num primeiro momento, é trabalhar com o mosquito, diminuindo sua reprodução e, assim, a possibilidade de infecção, que é a medida pública de saúde mais importante neste momento".

Sobre a vacinação, ressalta que "o desenvolvimento da vacina é fundamental e está em andamento, embora ainda não tenhamos resultados". Destaca ainda as dificuldades das famílias para seguir as recomendações preventivas. "Repelentes são caros, evitar exposição ao mosquito em um país tropical é complicado, e muitas famílias vulneráveis não têm ar-condicionado para ajudar nesse controle", pontua Maria Elisabeth Lopes Moreira.

Por fim, a neonatologista e pesquisadora do IFF/Fiocruz reforça o papel insubstituível da pesquisa clínica. "A pesquisa científica, com coleta sistematizada de dados, é essencial para garantir a visibilidade da situação das crianças e das famílias e para a elaboração de políticas públicas de saúde". E completa. "Isso só se dá através da pesquisa, que vai mostrar quais são as lacunas e os problemas que precisamos resolver para melhorar o cuidado, desenvolver vacinas, aprimorar diagnósticos e apoiar as mães".

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