'Malês' recupera o cinema novo e entrelaça o passado e o presente
Alessandra Monterastelli, São Paulo, Sp (folhapress) - 30/09/2025 16:06:15 | Foto: Divulgação
Um jovem escravizado do Brasil colônia descobre que sua mãe foi rainha e que seu destino é reinar. Ele, então, foge com seus companheiros rumo a Palmares, para liderar o quilombo contra os algozes brancos. Com apenas 25 anos, Antonio Pitanga, consagrado um dos principais rostos do cinema novo, encarnava o herói libertário no filme "Ganga Zumba", de Cacá Diegues, que em 1964 desembarcou no Festival de Cannes ao lado de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" e "Vidas Secas" para lançar o cinema brasileiro ao mundo.
Agora, aos 86, ele conta a história de outro levante. "Malês", por ele dirigido e protagonizado ao lado de seus dois filhos, Camila e Rocco Pitanga, narra a Revolta dos Malês, rebelião de escravizados muçulmanos que eclodiu na Salvador de 1835.
Com a produção que chega nesta quinta (2) aos cinemas, é a segunda vez que Antonio assina como cineasta -a primeira foi com "Na Boca do Mundo", de 1979, um marco das produções nacionais por ressaltar o protagonismo negro.
Quando começou a atuar, ele lembra, ainda eram poucos aqueles na frente das câmeras com a sua cor. Hoje são mais, ainda que escassos na criação de roteiros e na direção de tramas. "Ainda é pouco pelo tamanho do Brasil", diz, sem esmaecer do rosto o sorriso que conquistou as telonas ainda em branco e preto.
Vinte anos depois de "Ganga Zumba", Antonio voltou a Palmares com "Quilombo", também de Diegues. Camila, com sete anos, acompanhava o pai no set. "Era muito impactante. A cidade cenográfica, com aqueles corpos negros todos ornamentados. A Zezé Motta, aquela deusa. Era muito forte", diz Camila, ao lado do pai. Antes da entrevista, ela aperta sua mão e pergunta se ele está ansioso.
Já veterana nas telinhas, a atriz viu sua popularidade nas redes deslanchar recentemente após viver Lola, a vilã cômica e expansiva de "Beleza Fatal", primeira novela da HBO Max. Internautas recuperaram cenas suas como Bebel, seu personagem mais marcante na TV até então, do folhetim "Paraíso Tropical", de 2007. Em "Malês", ela interpreta a polêmica Sabina da Cruz -comerciante e africana livre que denunciou o levante às autoridades, que reprimiram a revolta.
Em troca, ela recebeu isenção de impostos e pôde adquirir bens, que deixou para seus herdeiros e protegidos. "Ela estava tentando preservar o pouco que tinha. Que ética é possível quando todas as pessoas são submetidas a desumanização?", diz Camila.
O filme mostra como Sabina temia o envolvimento de seu marido, Vitório, na revolta, o que poderia levar à punição de sua família. O casal vivia em conflito também por motivos religiosos -ela era do candomblé, e ele, muçulmano.
Já Antonio interpreta Pacifico, líder religioso dos malês. Ainda escravizado, sua prisão para pagar uma dívida agita os ânimos entre seus seguidores -entre eles, Vitório.
Com conflitos internos e externos, Sabina expõe os dilemas de existir como mulher negra em um país escravocrata, e se afasta de personagens planos que, por muito tempo, ocuparam tramas ambientadas no Brasil colônia -mais numerosas ao representar os meandros da família real do que as várias revoltas do período.
"A TV caminhou algumas léguas no sentido de entender que não cabe mais uma visão onde a escravização é uma paisagem da história do Brasil, onde negros e negras são sujeitos passivos e vítimas de sua condição", diz Camila, ao lembrar também de sua personagem Isabel na novela "Lado a Lado", na Globo. "Somos sujeitos da nossa história, ainda que ela tenha sido passada para a gente parecendo que não."
Não por acaso, transformar em filme o maior levante urbano de escravizados do país foi uma obsessão que acompanhou Antonio por décadas. O projeto começou a criar corpo há 12 anos, quando Manuela Dias, que hoje assina a trama do remake de "Vale Tudo", assumiu o roteiro. "Nasci no Pelourinho. Se você nasce no Pelourinho, já vem cheio de história", diz o ator. "A história do povo negro, a história do povo brasileiro, não está na vitrine. É preciso que seja contada."
De certa forma, Antonio conseguiu. Não só com filmes históricos, mas também com seus personagens que deram vida a um Brasil cotidiano e político em sua realidade. "Imagine um ator negro protagonizando um filme na década de 1960. Era um grito político, de democracia, de brasilidade", disse ele no palco do Prêmio Grande Otelo, no ano passado, ao lado de outros nomes históricos do cinema nacional como Diegues, Zelito Viana, Lucy Barreto, Ruy Guerra e Walter Lima Jr.
Antonio Luiz Sampaio estreou no cinema com "Bahia de Todos os Santos", em 1960, como Pitanga, personagem que deu a ele seu sobrenome. Pouco tempo depois, participaria de "O Pagador de Promessas", único filme brasileiro a vencer a Palma de Ouro em Cannes. Mas seu primeiro papel como protagonista foi pelas mãos de Glauber Rocha, dois anos depois, em "Barravento".
Foi "Ganga Zumba" que tirou o ator da Bahia rumo à Cidade Maravilhosa, onde vive até hoje. Dali em diante foram mais de 50 filmes, entre eles "A Grande Cidade", "Compasso de Espera" e "Zuzu Angel", e outras tantas telenovelas, como "O Clone" e "Dona Beija". Nos palcos, fez "Poder Negro", no Teatro Oficina de José Celso Martinez.
"Ele bagunça o mundo com sensualidade", afirmou Diegues sobre ele. Namoradeiro, como disse Maria Bethânia, uma de suas ex-namoradas, ele se relacionou com outros grandes nomes da efervescente cena artística brasileira, como as atrizes Ítala Nandi e Vera Manhães, mãe de seus filhos. Antonio, que cresceu sem pai, ficaria com a guarda dos dois.
"Malês" parece propor um encontro geracional. Antonio, da turma de Glauber, sonhava em criar um cinema que cortasse o "cordão umbilical de uma cultura europeia, americana e bolchevique", diz. Atuar envolvia também enfrentar a repressão da ditadura militar, que minou o campo cultural por 21 anos.
Já Camila, formada nos bastidores da agitada vida artística do pai, é de uma leva de atores que fez cinema em paralelo à televisão, que conquistou um público mais amplo com as novelas -e, com isso, se aproximou de uma tão sonhada indústria audiovisual.
Hoje, as reivindicações de pai e filha se encontram na regulamentação do streaming. A expectativa é que a lei possa impulsionar a produção nacional e, mais do que isso, consolidar o público das produções brasileiras. Assim, novos lançamentos não enfrentarão as dificuldades de financiamento como "Malês".
"Hoje temos leis [de incentivo] que na época [do cinema novo] não tínhamos. Mas ainda não atende à demanda. O Brasil tem uma escolha para a sua própria história, porque ninguém pode levar 20 anos tentando produzir alguma coisa", disse Antonio, no ano passado, quando "Malês" foi apresentado no Festival do Rio.
"A gente quer um percentual obrigatório, um fomento obrigatório, que vai favorecer não só o mercado audiovisual brasileiro, mas o mercado mundial, porque temos boas histórias para contar. Podemos dobrar o número de 'O Agente Secreto', de 'Ainda Estou Aqui'", diz Camila, sobre o momento coroado pelo primeiro Oscar do Brasil, em março, e pelos prêmios em Cannes para Kleber Mendonça Filho e Wagner Moura. "A regulamentação é organizar a casa, para que o público brasileiro possa ter um cardápio de produções nacionais no mercado estável."
MALÊS
- Quando Estreia na qui. (2) nos cinemas
- Classificação 16 anos
- Elenco Camila Pitanga, Rocco Pitanga, Rodrigo dos Santos
- Produção Brasil, 2025
- Direção Antonio Pitanga
'Malês' recupera o cinema novo e entrelaça o passado e o presente
INÁCIO ARAUJO, FOLHAPRESS - Em "Malês" existe uma espécie de eco do cinema novo, do qual Antonio Pitanga participou como ator em várias ocasiões. Claro que não estamos no cinema novo, mas o desejo de mostrar algo até hoje ignorado no Brasil e na história do Brasil está presente. Trata-se de uma revolta ocorrida na Bahia, século 19, que envolve desde a existência de escravizados de religião muçulmana até o fato de eles serem alfabetizados.
Claro, isso remete ao desejo cinemanovista de trazer ao cinema um Brasil desconhecido e, no caso, é possível supor, bem escondido. Essa conexão aparece no discurso das personagens masculinas com frequência: há um inconformismo com sua condição que se revela tanto no desejo de construção de uma mesquita quanto no desejo de se libertar o maior número de escravizados possível mediante compra.
Nesse meio, fermenta a revolta sutilmente, o que se manifesta no falar desses homens que têm, aliás, uma dicção interessantíssima.
Fiquemos, por ora, com a mesquita: ela encerra o desejo de transmitir ensinamentos não só religiosos aos escravizados. Ensinamentos podem ser subversivos. No caso de "viventes", vistos como pouco mais do que objetos, o conhecimento é pólvora -quer os conjurados o admitam ou não.
A ação que se desenrola é didática, mas não como princípio: não se trata de mostrar às pessoas como agir, mas de buscar reconstituir o princípio da rebeldia -causas e consequências.
No mais, é preciso dizer que Pitanga faz um filme sobre o escravagismo e consegue fugir das muitas armadilhas que um trabalho dessa natureza sugere. Apenas como exemplo, é preciso notar as mulheres brancas da história. Elas não precisam bater, gritar, nada disso, para infundirem terror. A proprietária de terras, tanto quanto a freira, basta que olhem para as pessoas para sabermos exatamente como os negros de hoje sentem o olhar do homem branco.
Há na fazendeira, papel de Patrícia Pillar, um misto de desprezo e ódio pelo outro que dispensa demonstrações de força. Basta que leve o chicote: a força já está lá e equivale à dominação absoluta. Basta vê-la, com a ameaça implícita que marca seus olhares e gestos, para entendermos do que se trata.
Há na freira de Ítala Nandi o desejo de ensinar as belezas do cristianismo às jovens negras que pressupõe serem ignorantes por princípio -não conhecem o verdadeiro Deus, essas coisas-, e, no limite, desprezíveis. A representação das mulheres brancas é um dos pontos fortes do filme, mas não o único. Há as negras, que pouco falam, mas pensam.
A representação da revolta dos malês pelo filme tem muito a ver com o fundo histórico com que o Brasil convive até hoje, naturalmente, mas nisso o que mais afeta a realização, o que a motiva, é o esquecimento -desse episódio histórico, para começar.
Tem a ver também com a capacidade de evocar nosso passado angustiante e entrelaçá-lo ao presente que nos assombra, do qual é parte indissociável a naturalização da violência contra os negros -e pobres em geral- no país. É disso que trata "Malês", no fim das contas.
Pitanga expõe a ação com a mesma clareza que maneja seus argumentos. Pesa ali a data, 1835, um momento que precede em anos as primeiras legislações que anunciavam a condenação final do escravismo. Não se tratava, pode-se acreditar, de uma revolta capaz de chegar à vitória, mas de um signo que dava a ver a situação insuportável que viviam. Talvez por isso mesmo ela tenha ficado tanto tempo ignorada: o Brasil sabe cantar suas belezas, mas sabe como poucos esconder suas vergonhas.
Num filme que vale pela produção bem ajustada, pela bela luz, pelo elenco muito eficiente e equilibrado -do qual impossível não notar o trabalho de Rodrigo dos Santos-, pela capacidade de Pitanga de esquivar-se das armadilhas do gênero, não há como assinalar a intromissão de uma longa cena amorosa entre Dassalu, papel de Rocco Pitanga, e Abayme, vivida por Samira Carvalho. Entende-se a provável intenção de notar o amor -carnal e não carnal- entre as personagens, mas a cena destoa do conjunto do filme e das aflições das personagens, sempre ameaçadas de serem separadas.
Malês
Avaliação Muito bom
Quando Estreia na qui. (2) nos cinemas
Classificação 16 anos
Elenco Camila Pitanga, Rocco Pitanga, Rodrigo dos Santos
Produção Brasil, 2025
Direção Antonio Pitanga
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