Bolo de chocolate, vovó e agressões

Uma pena que nossa sociedade até este momento não esteja preparada para extrair tanta virtude dessa convivência intergeracional.

Bolo de chocolate, vovó e agressões
Bolo de chocolate, vovó e agressões

Juíza Monize Da Silva Freitas Marques - Tribunal De Justiça Do Distrito Federal E Dos Territórios - 04/08/2020 10:36:15 | Foto: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios – TJDFT

No dia 26 de julho do ano passado comemos um bolo delicioso de chocolate. Algo bem simples, mas muito simbólico, pois não costumo deixar meus filhos se lambuzarem de doce com frequência...

Era um dia especial, daqueles que tornam os sabores mais intensos, os sorrisos mais espontâneos e os abraços mais calorosos!

Dia 26 de julho é o dia dos avós, e, no ano passado, tivemos mais uma oportunidade de comemorar com a Bisa, vovó Palmira, matriarca da minha família. As crianças se divertiram, claro. Eu me alegrei muito, claro. Mas era visível como a Bisa se esforçava para equilibrar a paz de entender estar perto do fim, com o entusiasmo de se sentir viva, muito viva!

Foi o último dia dos avós que passamos juntas. Ela faleceu em dezembro mas nos deixou um legado incalculável de lembranças, esperança e amor.

Os velhos não têm só a prerrogativa de conhecerem o passado. Sua capacidade de suportar dores, ultrapassar barreiras e encarar grandes desafios os fazem uma fonte inesgotável de resiliência e esperança. Através dessas vivências, nós, mais novos, somos inspirados a prosseguir, confiantes de que tudo passa e, normalmente, termina bem.

Uma pena que nossa sociedade até este momento não esteja preparada para extrair tanta virtude dessa convivência intergeracional.

A velhice no Brasil ainda é demonstrada por símbolos relacionados à decrepitude, incapacidade e dependência. O pictograma do homem de bengala, encurvado, para designar vaga reservada a 60+ nem sempre combina com o homem forte, cheio de auto-estima, que desce de seu veículo na porta do banco. A imagem da vovó com os óculos na beira do nariz, balançando na cadeira enquanto faz um xale de crochê, também não se encaixa no perfil de vovós saradas e autônomas, que saem das academias e vão passear no shopping com seus netos.

É certo que há velhice dependente e com inúmeros problemas de saúde. Mas essa não é a regra. Então porque associar os 60+ à exceção e deixar de contemplar a velhice bem-sucedida que está à frente dos nossos olhos?

O preconceito em razão da idade pode acontecer em diversas fases da vida, mas são os adolescentes e os idosos as vítimas mais evidentes. Em 1969, na cidade de Nova York, Robert Butler, médico psiquiatra e gerontólogo, cunhou o termo ‘ageism’ (ageismo, idadismo, etarismo, preconceito etário) para descrever a criação de estereótipos ou práticas discriminatórias contra o envelhecimento e condutas ou políticas institucionais que excluam ou limitem a participação social do idoso.

Creio que assim como eu, você também não se enxerga alguém que pratique o ageismo. Mas as práticas discriminatórias contra o idoso são muito sutis...

Toda vez que o excelente ​personal trainer não encontra mais lugar no mercado de trabalho porque completou 60 anos, a sociedade está sendo ageísta.

Quando a família repudia a iniciativa do idoso de recomeçar, seja um novo amor ou uma nova carreira, está tendo uma prática preconceituosa.

Quando a sociedade não tolera a idosa de short curto, o idoso de carro esportivo ou a mulher que deixa suas rugas e cabelos brancos à vista, também está praticando o ageismo.

A sociedade preconceituosa legitima a violência contra a pessoa idosa.

Segundo o Estatuto do Idoso, é violência contra a pessoa idosa “qualquer ação ou omissão praticada em local público ou privado que lhe cause morte, dano ou sofrimento físico ou psicológico” (BRASIL, 2003). Mundialmente foram tipificadas e padronizadas as formas mais usuais de violência contra a população idosa, que estão oficializadas nos documentos da Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violências (BRASIL, 2001) e no Plano de Ação para o Enfrentamento da Violência contra a Pessoa Idosa (BRASIL, 2007), conforme a seguir:

● Abuso físico, violência física ou maus-tratos físicos – refere-se ao uso da força física para compelir os idosos a fazerem o que não desejam, para feri-los, provocar-lhes dor, incapacidade ou morte.

● Abuso psicológico, violência psicológica ou maus-tratos psicológicos – corresponde a agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar os idosos, humilhá-los, restringir sua liberdade ou isolá-los do convívio social.

● Abuso sexual ou violência sexual – refere-se ao ato ou ao jogo sexual de caráter homo ou heterorrelacional, utilizando pessoas idosas, que visam a obter excitação, relação sexual ou práticas eróticas por meio de aliciamento, violência física ou ameaças.

● Abuso financeiro e econômico ou violência patrimonial – consiste na exploração imprópria ou ilegal dos idosos ou ao uso não consentido por eles de seus recursos financeiros e patrimoniais.

● Abandono – é uma forma de violência que se manifesta na ausência ou deserção dos responsáveis governamentais, institucionais ou familiares de prestarem socorro a uma pessoa idosa que necessite de proteção.

● Negligência – relativo à recusa ou omissão de cuidados devidos e necessários aos idosos, por parte dos responsáveis familiares ou institucionais.

● Autonegligência ou violência autoinfligida – diz respeito à conduta da pessoa idosa que ameaça sua própria saúde ou segurança, pela recusa de prover os cuidados necessários a si mesma.

Segundo o canal de denúncias Disque 100, do Governo Federal (MMFDH), em março deste ano foram registradas aproximadamente 3 mil denúncias de prática de violência contra a pessoa idosa. Em maio, esse número subiu para aproximadamente 17 mil. Isso não foi um erro de digitação... é um acréscimo de mais de 550%!

Será que o isolamento social, que forçou a convivência familiar intensa, notabilizou a vulnerabilidade desse grupo e o aumento vertiginoso das práticas delituosas no contexto das famílias?

Em um passado não muito distante, as famílias eram estruturadas a partir de casais hetero monogâmicos, pais de muitos filhos. Com o passar do tempo, o conceito de família a partir do vínculo biológico deu lugar ao vínculo afetivo, criando novas compreensões de família, tais como a família mosaico, a família monoparental, a família homoafetiva, e outras. Além disso, atualmente as estruturas familiares comportam poucos filhos, em virtude da maior participação da mulher no mercado de trabalho (AQUINO; MENEZES; e MARINHO, 2019). Por fim, as famílias foram impactadas pelo êxodo rural, encontrando-se num contexto de maior envolvimento profissional e menor convivência pessoal. Além de toda essa mudança na estrutura da família, dificultando as atividades de um cuidador informal, caso necessário, os idosos estão cada vez mais longevos, com uma sobrevida que aumenta a cada ano.

Percebe-se, pois, que o envelhecimento exige uma nova compreensão das estruturas familiares e também de um maior planejamento para esta etapa da vida.

O fato é que, com o fortalecimento dos vínculos em família e a consequente consolidação das relações interpessoais baseadas no respeito, toda a sociedade é impactada, sobretudo em face da diminuição dos conflitos e do resgate do verdadeiro sentido da dignidade da pessoa humana.

Precisamos refletir sobre a saúde do envelhecimento no Brasil. Precisamos refletir sobre a convivência entre as gerações e seus aspectos positivos e desafiadores. Precisamos nos preparar para encontrar felicidade nos bolos de chocolate nos dias 26 de julho. Afinal, o mundo está envelhecendo... e se você não tem avós, provavelmente será um.

A juíza de direito substituta Monize da Silva Freitas Marques é juíza coordenadora Centro Judiciário de Soluções de Conflitos e Cidadania de Taguatinga e de Águas Claras, e é uma das coordenadoras da Central Judicial do Idoso

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