Flip tem discussão sobre como inventar linguagens pela luta feminista

Mesa na Flip mostra a literatura como arma de vingança contra feminicídios.

Flip tem discussão sobre como inventar linguagens pela luta feminista
Flip tem discussão sobre como inventar linguagens pela luta feminista

Victoria Damasceno, Paraty, Rj (folhapress) - 03/08/2025 13:24:14 | Foto:

WALTER PORTO, PARATY, RJ (FOLHAPRESS) - Um dos melhores debates desta Flip reuniu duas amigas latinas que moram há quase 40 anos nos Estados Unidos. A mexicana Cristina Rivera Garza e a argentina María Negroni contaram como foram os processos ricos e turbulentos de descoberta da linguagem para escrever seus livros celebrados.

Rivera Garza venceu o Pulitzer no ano passado por "O Invencível Verão de Liliana", que narra o feminicídio de sua irmã em 1990 e foi publicado pela Autêntica, com tradução de Silvia Massimini Felix. Levou 30 anos para escrever, disse ela, porque precisou se armar de um vocabulário que antes não existia –o criado pelas lutas feministas.

"Foram elas que produziram a linguagem que pude usar para entender e dizer 'foi isso que aconteceu'. Antes falávamos 'romance no trabalho' para o que hoje entendemos como assédio sexual. Posso agora dizer que Liliana não tomou uma má decisão, que não foi culpada pelo que houve com ela. E me permiti ver a série de pequenas violências cotidianas que se vão acumulando e alcançam sua forma mais letal, o feminicídio."
Sem linguagem, ela não podia ver isso, e esta "veio das ruas", segundo ela. "Essa narrativa que se aproxima das mulheres sem culpá-las pela violência que sofrem produziu, além de linguagem, uma audiência e escuta. Pude encontrar nos ouvidos dos outros esse abraço a uma história que tinha aqui dentro e para a qual não encontrava palavras."
Negroni trouxe um viés bem distinto ao narrar como surgiu seu "O Coração do Dano", traduzido por Paloma Vidal para a WMF Martins Fontes. É uma história turbulenta, dúbia, quase contraditória, sobre a influência de sua mãe morta sobre ela.

Escrever um livro, afirmou, é sempre um mistério. "Não há uma relação direta entre o que quero contar e o que eu conto. Conto o que eu posso." Este foi se escrevendo a partir das raízes da perda materna, mas sem ser uma obra sobre o luto –Negroni queria articular de alguma forma algo que sempre esteve dentro dela.

"Essa figura materna de alguma maneira me constitui. Digo que minha mãe sempre foi 'a dona da linguagem'. Para todo escritor, há duas linguagens: a materna, que ouvimos desde que somos embriões, e a da biblioteca. Ela vem tanto dos livros que já foram escritos quanto da música pessoal que nos forma, a linguagem da mãe."
A literatura, segundo Rivera Garza, é antes de tudo um gesto de subversão da língua. Livros como este sobre sua irmã e "Autobiografia do Algodão", que aborda as origens de seus avós na fronteira do México com os Estados Unidos, são ainda para ela um trabalho de cuidado.

"É uma pesquisa amorosa na qual tive que passar muitos anos. O livro de Liliana não é sobre ela, sinto que foi escrito com ela. É um trabalho de sororidade. A literatura é poderosa assim, a ponto de nos unir e fazer entender que somos parte de uma história maior."
A mexicana enxerga toda literatura como um ato informado por relações sociais, culturais e afetivas, rejeitando a ideia de individualidade como uma visão produzida pelo neoliberalismo. Sua amiga argentina discordou e defendeu a singularidade de cada um. "Em cada pessoa há um mundo inteiro, intraduzível aos outros."
Rivera Garza exibiu uma verve política mais aflorada, em especial quando o mediador, o jornalista Guilherme Freitas, perguntou sobre a situação no Texas, onde ela vive e leciona numa especialização em escrita criativa totalmente em espanhol, diante das recentes medidas contra imigrantes e universidades pelo governo Donald Trump.

Não poupou palavras duras ao presidente e disse que o ambiente acadêmico se tornou tenso e alvo de achaques "como em todos os Estados Unidos". No fim da fala, brincou. "Se vocês estiverem gravando isso, talvez eles não vão me deixar entrar de volta. Aí vou ter que continuar vivendo aqui, perto do Rio, e comendo bem."

Pressão estética faz com que velhice comece aos 30 para as mulheres, afirma Mirian Goldenberg na Flip

A pressão estética faz com que as mulheres sejam tachadas como velhas e busquem alternativas para driblar o efeito dos anos sobre o corpo a partir dos 30 anos. A afirmação é de Mirian Goldenberg, antropóloga e colunista da Folha que estuda o tema há mais de três décadas.

"A velhice é um momento que começa muito cedo e dura muito tempo", disse ela em uma mesa na Casa Folha, espaço do jornal na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, neste sábado (2). "Na nossa cultura, somos culpadas por estar ficando velha."
O encontro entre a antropóloga e a psicanalista Carol Tilkian, também colunista da Folha, teve como mote "envelhecer sem tabus" e foi mediado pela repórter especial Fernanda Mena. Com maioria feminina entre os presentes, a conversa ganhou tom de chá entre amigas. Enquanto as colunistas mostravam que temer o envelhecimento é uma experiência coletiva, as espectadoras compartilhavam suas vulnerabilidades.

Rugas, ganho de peso, peito caído, flacidez, fim da vida reprodutiva, ou seja, o efeito do tempo sobre o corpo é um dos motivos que mais fazem as mulheres terem medo da velhice, segundo Goldenberg.

"Mulher tem muito medo de falta de liberdade, invisibilidade social", diz ela, acrescentando que, enquanto isso, suas pesquisas indicam que o medo dos homens é, principalmente, a aposentadoria, que pode tirá-los de um espaço social de prestígio, a impotência sexual e a dependência.

Problema maior é que, apesar do medo da impotência, o fim da vida sexual entre os casais é um dos motivos que levam ao divórcio -e são as mulheres que não querem deixar a cama de lado, segundo a antropóloga. Elas também querem liberdade, amizade e cuidar mais de si mesmas.

"Não é à toa que cresce muito o divórcio grisalho. Não é por traição, como era quando eu comecei minhas pesquisas. É porque a mulher quer liberdade e o homem quer a casinha gostosa com a mulherzinha. E tem um descompasso total. Quem pede o divórcio grisalho? As mulheres. Por quê? Porque não aguentam ficar com aqueles trastes", afirma a antropóloga.

O que Tilkian observa em sua prática clínica corrobora os resultados das pesquisas de Goldenberg. A resistência pela mudança e a insistência para que a dinâmica do casal permaneça sempre a mesma leva ao seu divã homens e mulheres mais velhos.

"O que vejo nos divórcios grisalhos é a gente poder desconstruir e reconstruir. Tem um comportamento que é manter as coisas como eram antes, aí a gente vê em briga de casal 'Mas você não era assim?', 'mas as coisas não eram assim?' ou 'você mudou!', como se mudar fosse um problema. E sim, nós mudamos", disse a psicanalista.

Solução, então, seria se submeter a todas as mudanças? Não. Para Tilkian, o objetivo é aprender a lidar com as transformações no desejo do outro e de si próprio, compreendendo que, às vezes, o casal não vai caminhar no mesmo sentido ou velocidade -e, assim, podem buscar um novo caminho juntos.

Escritoras debatem desafios na criação de personagens literários na Casa Folha

FERNANDA MENA, PARATY, RJ (FOLHAPRESS) - A primeira mesa da Casa Folha deste sábado, quarto dia da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, reuniu as escritoras e colunistas da Folha Bianca Santana e Giovana Madalosso, que lançam livros no evento e falaram sobre a criação e o imperativo de desconstruir a imagem da escrita como ofício inalcançável.

Santana apresenta "Apolinária", pela Fósforo, seu primeiro romance, e Madalosso mostra "Batida Só", da Todavia. Intitulada "Árvore Genealógica", a mesa tratou das origens de personagens criados e desenvolvidos em seus livros e teve mediação da jornalista Victoria Damasceno.

Madalosso explicou que encontrou a necessidade de descobrir algum tipo de empatia com seus personagens, por mais "chatos e difíceis" que eles sejam, para se conectar a eles e dar profundidade a suas existências literárias.

Foi o caso de "Suíte Tóquio", disse. "Tive de desenvolver uma babá que é muito explorada e uma patroa que é uma empresária muito bem-sucedida e que praticamente escraviza essa mulher e achar coisas com as quais me conectar a elas para fazer o livro como eu queria", afirmou ela.

Já em seu novo livro, "Batida Só", a dinâmica foi outra: transmutar em ficção enredos baseados em sua vida. Madalosso viveu um período em que sua filha, criança, ficou doente e, mesmo que estivesse na época escrevendo um livro sobre menopausa, decidiu mudar o percurso e criar uma ficção sobre o tema que se tornou tão urgente sem expor sua história e seus afetos.

Santana falou sobre o desafio de trazer para a escrita os contraditórios de personagens cercados de afeto, citando sua avó, que inspirou a personagem do romance "Apolinária", e a filósofa Sueli Carneiro, cuja biografia, "Continuo Preta", da Companhia das Letras, ela assina.

"Eu admiro enormemente Sueli Carneiro e não escondo isso. Mas não podia trazer só as maravilhas dela, precisava do contraditório porque, senão, desumanizo ela. E desumanização também é racismo", disse.

Já "Apolinária", inspirado na avó, teve outro tipo de desafio, porque as contradições de sua familiar ela já conhecia de trás para frente. "Ela tinha um projeto de embranquecimento da família que também era um projeto de embranquecimento do país. Ela era filha deste Brasil. Contar a complexidade de Apolinária foi mais simples."
Santana falou ainda da relação com o pai, revelada em sua participação no podcast da psicanalista e colunista da Folha Vera Iaconelli, e da possibilidade de transformar essa história em livro.

Seu pai, Feliciano, morreu com um tiro na cabeça, que não se sabe ter sido assassinato ou suicídio. E que isso é um dos fatores que levaram a morte a ser algo tão constitutivo de sua existência. "Uma pessoa negra é assassinada a cada 12 minutos no Brasil. Portanto, mesmo que meu pai não tenha sido assassinado, a morte violenta me constitui, não só porque as pessoas negras sobreviveram à violência do tráfico transatlântico, mas porque a violência do racismo persiste ainda hoje."
Questionadas sobre que dicas dariam para alguém que quer escrever, as autoras falaram que o ofício da escrita sempre esteve envolto em uma aura inalcançável aos mortais e que isso afasta muitas pessoas deste exercício. Segundo elas, é preciso se libertar desta imagem e começar.

Mesa na Flip mostra a literatura como arma de vingança contra feminicídios

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER, PARATY, RJ (FOLHAPRESS) - Duas escritoras latino-americanas, a mexicana Dahlia de la Cerda e a argentina Dolores Reyes, levaram à Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, neste sábado (2), temas tão pesados quanto feminicídio e aborto com a crueza de quem sabe que a literatura é, às vezes, o lugar onde a justiça pode existir.

Vale sempre questionar por que os homens não estão escrevendo sobre o assassinato epidêmico de mulheres. "Claro, nem todo homem", ironizou a mediadora Gabriela Mayer, ao lançar a pergunta no debate.

Autora de "Cadelas de Aluguel", Cerda fundou o coletivo Morras Help Morras, que milita pelo aborto seguro em seu país natal. Em Paraty, ela falou sobre o peso de escrever personagens que reagem com fúria diante da violência, logo ela que se diz "antipunitivista".

"Escrevo sobre mulheres muito furiosas, a raiva feminina, mulheres que se vingam de seus agressores ou que fazem o que podem com o que têm."
No seu livro, por exemplo, uma personagem revida o assassinato de sua melhor amiga. "Para mim, é uma forma de problematizar a violência, de provocar reflexão nos leitores. E também porque, muitas vezes, é mais fácil encontrar justiça pela literatura do que na realidade, especialmente no México."
A autora diz que tem nortes éticos, como ver o cárcere como última opção, que entram em conflito com o que querem as vítimas da violência masculina.

"Eu me encontrava com uma mãe cuja filha foi brutalmente assassinada por um adolescente de 16 anos, e ela dizia: 'Eu quero que esse assassino passe o resto da vida na cadeia'. E eu não conseguia comer depois disso, porque esse era o desejo da mãe da vítima, mas contrariava meus princípios éticos. Mas eu podia simplesmente dizer a essa mãe em sofrimento: 'A justiça que você está buscando está errada. Você quer ver esse jovem preso por 40 anos? Reavalie sua ideia de justiça'. Eu não podia fazer isso."
Reyes vem de um país que, segundo ela, ainda prefere calar sobre a violência contra mulheres. Em "Cometerra", ela conta a história de uma menina que tem visões ao comer terra onde corpos femininos foram violentados.

Sua protagonista, diz, "não é uma super-heroína da Marvel que sai voando, para um trem com o braço ou segura balas com o peito". Essa criança "só tem um dom que, em nossa sociedade, ganha uma dimensão enorme, justamente pelas violências das quais Dahlia estava falando".

Seu livro foi malvisto pelo governo Javier Milei anos após ser publicado, em 2019 –ganhou da gestão ultraliberal na economia, e com contornos moralistas nos costumes, o rótulo de literatura "degradante" e "degenerada", nas palavras da vice-presidente Victoria Villarreal. Contexto: uma fundação havia pedido que este e outros títulos fossem retirados de escolas de Buenos Aires.

O impacto político da obra não passou despercebido. "Por que minha história foi vista como uma ameaça?", ela se pergunta. "Talvez porque minha personagem busca meninas desaparecidas, e o poder não quer falar sobre isso. A ficção pode fazer o que o estado se recusa: forçar o leitor a passar por uma experiência simbólica e encarar a dor."

Nei Lopes ata livros, fé e festa em apresentação com Luiz Antonio Simas na Flip

MAURÍCIO MEIRELES, PARATY, RJ (FOLHAPRESS) - Antes mesmo de dizer qualquer coisa, Nei Lopes já pisou no palco da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, sob fortes aplausos da plateia neste sábado (2). Um dos grandes intelectuais negros e compositores do Brasil, o escritor de 83 anos deu um testemunho sobre vida e trajetória intelectual, no qual atou os livros, a música e a espiritualidade de matriz africana.

Autor de sambas clássicos, como "Senhora Liberdade", Nei contou estar trabalhando em uma autobiografia, encorajado por amigos e editoras -e deu esse tom a sua fala.

O sambista e escritor começou lembrando, por exemplo, a formação intelectual que teve com o apoio da família; ele foi o primeiro a ir além do ensino primário e acabaria se formando advogado na Faculdade Nacional de Direito.

"Um dos meus irmãos era gráfico. Quando viu minha vontade de ter o livro como ferramenta, tudo o que era possibilidade ele me dava um", disse. "Na cabeça dos meus irmãos era sempre isso: 'Eu não fui, mas quero que ele vá'".

Ao mesmo tempo, os estudos eram conciliados com uma vocação festeira dentro de casa. O sambista fez a plateia rir ao contar os eventos promovidos pela família. "Meus irmãos inventaram um evento importantíssimo: o Festival do Ensopado", riu, contando como cada um levava um prato, havia um apresentador e um júri para eleger o melhor.

A mediação bem-humorada foi do escritor e historiador Luiz Antonio Simas, parceiro do autor em diversos livros. O clima era de uma conversa descompromissada, mas que conseguiu mostrar ao público a relevância da obra do convidado
Nei discorreu sobre sua relação com as escolas de samba, desde sua estreia no Salgueiro, em 1963 -ele foi autor do enredo clássico sobre Xica da Silva naquele ano, primeira vez em que os desfiles ocorreram na avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Em 1972, ele largaria o direito, mas sem que esse universo deixasse de aparecer em seus sambas.

"O samba realmente é uma cultura, uma coisa completa. Lamentavelmente, a sociedade de consumo foi mudando isso. A década de 1960 foi a que eu vivi o samba que gostaria que todos vivessem, inclusive participando do Salgueiro, que revolucionou o Carnaval", disse.

O compositor também fez uma defesa contundente de mudanças na cultura do samba, sustentando que as escolas não girem apenas em torno dos desfiles uma vez por ano. "Deveria se descolonizar do Carnaval. Carnaval é uma coisa, samba é outra. Até os anos 1960, as escolas tinham uma vida que você não pode imaginar. Era o ano inteiro."
Os dois lembraram também a carreira dele como escritor, que começou nos anos 1980 com "O Samba, na Realidade" e se dedica a estudar a herança africana em obras de não ficção e ficção. Simas perguntou como esse caminho se abriu para Nei.

"Tive um compromisso com a minha família, com a minha etnicidade. Era alguma coisa lá de trás me dizendo 'vai por aqui'", afirmou. "Era uma época em que a descolonização da África fazia chegar um material muito importante sobre as tradições africanas."
"Quase sem querer assumi um compromisso com a minha ancestralidade -essa palavra tão castigada hoje-, ao mostrar que por trás da pobreza existe todo um Brasil que deve extremamente à africanidade."
A espiritualidade também aparece em sua obra e vida -ele é babalaô no Culto de Ifá e escreveu sobre esse sistema oracular iorubano, por exemplo. Segundo Nei, essa relação com a fé de matriz africana começou dentro de casa, já que sua mãe costumava incorporar uma entidade chamada vovó Maria Conga.

"Vovó Maria Conga era sentida lá em casa como se fosse uma pessoa da família", contou. "Era natural dentro essa proximidade. O que fiz foi buscar me aprofundar, entender o que é orixá, o que não é. Fui indo e estou muito feliz com o conhecimento dessas razões, que é algo que cada um deve trazer dentro de si. Cada um tem a religião que lhe convém."
O encontro terminou com uma bela declaração de Simas sobre a obra de Nei, que levou a plateia a fortes aplausos outra vez. "Lima Barreto tinha o desejo de escrever a história do negro no Brasil. No 'Memorial de Aires', Machado de Assis diz que alguém deveria escrever a história do subúrbio do Rio de Janeiro. Se eu encontrasse os dois, eu diria: Nei Lopes fez isso."
Os dois deixaram o palco ao som de "Samba do Irajá", da lavra do compositor.

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