Maluco Beleza, Raul Seixas atravessa gerações com temas da juventude

'Ele falava diretamente para os jovens', diz amigo e fã Sylvio Passos.

Maluco Beleza, Raul Seixas atravessa gerações com temas da juventude
Maluco Beleza, Raul Seixas atravessa gerações com temas da juventude

Cristina índio Do Brasil E Flávia Albuquerque - Repórteres Da Agência Brasil - 29/06/2025 11:37:22 | Foto: © Acervo Discogs

Pioneiro do rock brasileiro e "maluco beleza", Raul Seixas deixou, com seu trabalho múltiplo, mensagens de contestação e liberdade, transmitidas nas músicas e em seu modo de viver, que influenciaram admiradores e atravessaram gerações. O cantor e compositor, nascido em Salvador, completaria 80 anos neste sábado (28).

Sylvio Passos, amigo e fundador do fã clube oficial reconhecido pelo próprio Raul, explica a renovação de gerações de admiradores de Raul Seixas pela identificação da juventude com sua mensagem.

“Raul fala para várias gerações. Por que isso? Porque a linguagem do Raul trata de temas não tão comuns de maneira mais acessível. Ele falava diretamente para os jovens, e os jovens estão se renovando, de geração em geração. Por isso, os temas do Raul ainda mexem muito com essa geração mais jovem. Os velhos morrem e os jovens estão sempre se renovando, se renovando e se renovando. Os temas que o Raul aborda nas suas músicas são de muito interesse dos jovens”.

“Para a música brasileira, o Raul é um artista único que tratava de temas não tão simples, temas complexos como metafísica, filosofia, enfim, tratava de amor de maneira diferenciada e de questões políticas. A obra do Raul é muito ampla, pluralidade total”, completou.

Foi quando era jovem, em 1981, que o caso de admiração de Sylvio Passos por seu ídolo se transformou em amizade. Naquele ano, Passos se aproximou de Raul Seixas porque queria fundar um fã clube em sua homenagem. Ele não apenas conseguiu como garantiu uma feliz coincidência: a inauguração ocorreu na data do 36º aniversário de Raul.

Um anúncio em jornal, no qual Sylvio buscava referências de Raul, teve resultado quando o presidente do Beatles Cavern Club, Luis Antônio, entregou para Sylvio o telefone e endereço do artista, no bairro do Brooklin, na capital paulista, e aproximou os dois.

“Descobri que o Raul estava vindo morar em São Paulo, tinha saído do Rio, e consegui o telefone da casa dele. Liguei para ele, dizendo que estava fundando um fã clube para homenageá-lo, e ele me convidou para um almoço. Esse almoço virou um jantar, que virou se tornou frequente por aproximadamente dez anos. Nunca mais a gente deixou de se falar. Raul me levava para todos os lugares”, disse Sylvio Passos à Agência Brasil, acrescentando que a amizade, no primeiro momento, era uma relação de fã e ídolo mas, em pouquíssimo tempo, passou a ser uma relação de amigos comuns.

“Duas pessoas que se conheciam, apesar da diferença de idade. Raul era 18 anos mais velho que eu, mas tínhamos gostos em comum, muitas coisas em comum. Não sei como traduzir muito bem isso, mas era legal”, relatou. “Eu tive o privilégio de compartilhar da amizade e da confiança dele, que eu classificava inclusive como meu segundo pai. Tive meu pai biológico e o Raul era meu pai intelectual”.

Na escola, Sylvio Passos já tinha criado, com amigos, fãs clubes e fanzines das bandas inglesas Led Zeppelin, Jethro Tull e King Crimson. Mas, na época, surgiu a vontade de prestar homenagem a um “cidadão do rock brasileiro” ─ e a imagem que veio foi a de Raul Seixas, contou ele.

“O próprio Raul tornou o fã clube oficial. O nome do fã clube era Raul Rock Club, e o Raul botou Raul Seixas Oficial Fã Clube, o primeiro e único fã clube oficial do Raul”, disse orgulhoso.

Sociedade Alternativa

Um outro marco da trajetória de Raul foi o lançamento da Sociedade Alternativa, fruto da parceria com Paulo Coelho que vai além da música de mesmo nome e aprofundou os estudos esotéricos da dupla. Segundo Sylvio Passos, para Raul, era momento de provocar mudanças no mundo. Nos shows, ele distribuiu um gibi/manifesto chamado A Fundação de Krig-ha, que tinha ilustração da mulher de Paulo na época, Adalgisa Rios.

A Sociedade Alternativa chegou a ter uma sede alugada e papel timbrado. Com o tempo, houve a compra de um terreno em Minas Gerais, para a construção da Cidade das Estrelas, uma comunidade onde a lei única era "Faze o que tu queres, há de ser tudo da lei".

A iniciativa não foi bem recebida, e Raul foi preso e torturado pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), sendo obrigado a deixar o país. Raul, Paulo, Edith e Adalgisa se mudaram para os Estados Unidos, onde fizeram contato com algumas personalidades, recordou Sylvio Passos, em texto publicado no site do Raul Seixas Oficial Fã Clube.

Memória
Vivian Seixas, uma das três filhas de Raul, disse que preservar a memória do pai tem sido um ato de amor e de responsabilidade. “Eu faço isso com muita entrega, porque sei o quanto ele foi e ainda é importante. Cada projeto, cada homenagem é pensado com cuidado, com respeito à obra e à essência dele. Não é só sobre manter vivo o nome ‘Raul Seixas’, mas tudo o que meu pai representava: liberdade, questionamento, autenticidade”, revelou Vivi à Agência Brasil. Ela considera lindo ver a renovação de gerações no envolvimento com o trabalho do Raul.

“Muita gente que nem era nascida quando meu pai morreu hoje canta as músicas, se emociona com as letras, se identifica com as mensagens. Isso mostra que a obra dele é atemporal. Meu pai falava com o coração, com a mente aberta, e com coragem, isso atravessa o tempo. Ele não era só um cantor, era um pensador”, observou.

A DJ e produtora musical vê na coragem de ser o que se é, sem máscaras, o maior legado do pai. “Ele nunca se curvou ao sistema, nunca teve medo de mudar, de provocar. Meu pai abriu caminhos, artísticos, filosóficos e até espirituais pra muita gente. E isso se mantém vivo, principalmente entre quem sente que não se encaixa nas caixinhas da sociedade”, apontou.

Vivi era bem pequena quando o pai faleceu, mas guarda algumas lembranças marcantes. “Eu lembro da barba dele, da voz… e a voz eu posso ouvir sempre que quiser, né? Isso é muito forte, porque me mantém próxima, me mantém conectada a ele. A voz dele está ali, viva, cantando. E ele era muito divertido, cheio de brincadeiras comigo. Tenho também as cartinhas que ele me escrevia, coisas simples, mas carregadas de afeto. É assim que eu guardo meu pai em mim”, afirmou.

Cowboy fora-da-lei
De acordo com o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), responsável no Brasil pela arrecadação e distribuição dos direitos autorais das músicas aos seus autores, Raul deixou um legado de 324 obras musicais e 409 gravações cadastradas no banco de dados da gestão coletiva da música no Brasil.

“As obras musicais são as suas composições, com letra e/ou melodia e em parceria ou não. Já as gravações são registros de obras musicais disponibilizadas em forma digital (como no streaming) ou em suporte físico (como um DVD). Com isso, uma mesma obra musical pode ter diferentes gravações, como, por exemplo, a original, uma versão acústica ou um show gravado para um DVD”, explicou.

O ranking das mais executadas no último ano é liderado pela música Cowboy fora-da-lei, composta em parceria com Cláudio Roberto. O maior destaque entre as regravações é Medo da chuva, que compôs com Paulo Coelho, que aparece com 72 fonogramas cadastrados.

Mais uma vez, uma das comemorações na data de nascimento será no show Baú do Raul, no Circo Voador, centro do Rio de Janeiro. Criado em 1992 por Kika Seixas, uma das ex-mulheres do pioneiro do rock brasileiro.

A lista de artistas que participarão do show do Circo Voador representa bem essa mescla de idades de admiradores e seguidores. Estão previstos se apresentar Frejat, Paulinho Moska, Rick Ferreira, Arnaldo Brandão, Baia, Ana Cañas, Clariana, André Prando, BNegão, Emílio Dantas e Vivi Seixas.

Obras de Raul Seixas uniram estilos em seus 26 anos de carreira

Com uma obra musical composta por 17 discos e mais de 300 músicas, lançados durante 26 anos de carreira, Raul Seixas completaria neste sábado (28) 80 anos de vida. Considerado pai do rock brasileiro e cultuado por sucessivas gerações, o soteropolitano era um adolescente quando o rock surgiu no cenário musical, nos anos 50, e chegou ao Brasil. Influenciado e fascinado por toda a efervescência cultural da época, o artista criou um estilo próprio, combinando o ritmo ao baião, com referências a Elvis Presley.

A lista de canções memoráveis de Raul Seixas é longa, com letras contestadoras valorizam a crítica social e a liberdade individual: Maluco Beleza, Metamorfose Ambulante, Ouro de Tolo, Eu nasci há 10 mil anos atrás, Sociedade Alternativa, Gita, Cowboy fora-da-lei, Tente outra Vez, Medo da Chuva, O trem das 7, Capim Guiné, Como vovô já dizia, Carimbador maluco, Al Capone, Mosca na sopa, Meu amigo Pedro, O dia em que a Terra parou, S.O.S., Aluga-se, Eu também vou reclamar.

Segundo o pesquisador de música popular e cultura e professor na Universidade Mackenzie, Herom Vargas, o sucesso de Raul Seixas demorou a acontecer. Ainda em Salvador, formou sua primeira banda, os Panteras, na época da Jovem Guarda, no final dos anos 1960. O grupo conheceu o cantor Jerry Adriani, que os convidou para ir ao Rio de Janeiro. Rebatizada de Raulzito e os Panteras, a banda gravou então seu primeiro disco. O pesquisador conta que essa foi a primeira tentativa de atingir um público mais amplo e nacional.

"É claro que, em Salvador, ele já era conhecido, mas, no Rio e no resto do Brasil, ainda não. Só que o disco não fez sucesso, e uma parte da banda voltou para Salvador, enquanto ele continuou no Rio, sem nenhum dinheiro. Aquilo que ele fala na música Ouro de Tolo é verdade. Ele passou um perrengue no Rio de Janeiro”, explicou Vargas.

Em seguida, Raul foi produtor na gravadora CBS, e esse período durou até surgir uma nova oportunidade para que se unisse a mais três cantores: Miriam Batucada, Sérgio Sampaio e Edy Star. “E esses quatro fizeram um disco chamado Sociedade da Grã Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10. É um disco de 71. Um disco experimental, difícil de de ouvir, que obviamente não fez sucesso. Essa foi a segunda tentativa”.

Raul Seixas continuou trabalhando, e em 1972, se inscreveu no Festival Internacional da Canção, com a a música Let Me Sing, Let Me Sing. Ele não ganhou o festival, mas a música teve alguma repercussão, abrindo as portas de outra gravadora, a Philips Records, na qual lançou um compacto com Ouro de Tolo. Logo depois, veio seu primeiro disco solo, o Krig-ha, Bandolo!, de 1973.

“Esse é um disco clássico que, ainda hoje em dia, é um dos que sempre aparecem nas listas dos melhores discos da música brasileira. Tem Mosca na Sopa, Rockixe, As minas do Rei Salomão e uma série de de músicas bem legais do Raul. Foi aí que ele ficou conhecido nacionalmente. Batalhando desde 66, 67, só chegou no grande público em 73. É uma história bem interessante esse início de carreira, os perrengues todos, e as idas e vindas de um compositor e de um cantor. Ainda bem que deu certo”, disse Vargas.

O compositor também explorou temas como misticismo, filosofia e contracultura, expressos em sua parceria com Paulo Coelho, principalmente no início da década de 1970. Já Cláudio Roberto foi o parceiro mais frequente de Raul depois da fase com Paulo Coelho, com a composição de mais de 50 músicas ─ com 31 delas gravadas entre 1975 e 1988. Raul ainda teve como parceiros Marcelo Motta, em canções como A Maçã e Se Ainda Existe Amor; e Marcelo Nova, no álbum A Panela do Diabo, em 1989, marcando uma parceria importante no final da carreira de Raul.

Ocultismo e misticismo
Ao contrário do que muitos pensam, Raul Seixas nunca teve um vínculo propriamente dito com o misticismo ou com o ocultismo, sendo apenas um estudioso desses temas, disse o fã e amigo Sylvio Passos.

“Com o ocultismo, ele tinha lá suas reservas e olhava sempre com um olhar mais filosófico do que propriamente devoto, ocultista ou qualquer coisa desse sentido. O ocultista, na verdade, era o Paulo Coelho, que sempre foi um cara ligado mais a questões religiosas, metafísicas e tal. O Raul, não. O Raul era anarquista, como ele mesmo se definia. Uma metamorfose ambulante, um materialista dialético”.

Na definição de Passos, que acompanhou a carreira de roqueiro e se tornou amigo do cantor, da família e de amigos, Raul Seixas tratava de temas complexos sendo um cantor popular, um ‘cara’ do rock e da música brasileira como um todo. Isso imprimia a ele a singularidade e a importância dentro de todo cenário artístico brasileiro, já que ele trazia esses temas "para um povo que nem sequer lia".

“O mais curioso é que o Raul, sendo materialista dialético, uma metamorfose ambulante, a obra toda carrega uma pluralidade. Raul era plural, um investigador da história da humanidade, de por que o ser humano é o que é, por que se comporta da maneira que com se comporta. Ele olhava para o mundo, absorvia tudo isso e transformava em música. Ele dizia o seguinte: ‘se você quer me conhecer de fato, ouça meus discos, eu estou inteiro lá’”, afirmou Passos.

Segundo Passos, a transição da carreira de Raul Seixas, ao passar da pessoa que amava Elvis Presley e se inspirava nele para outra fase, se enquadra em um processo evolutivo comum a todos os seres humanos. Para o fã e amigo, a loucura por Elvis Presley pode ter sido o gatilho para que ele se tornasse o adolescente questionador, que chegou no adulto que, com 27 anos de idade, gravou seu primeiro disco.

“E com aquilo que ele coloca em todas as faixas e continua dali para frente. Então, tem toda essa cronologia do ser humano, do indivíduo, que vai evoluindo, e de alguma forma melhorando ou piorando. O Raul sempre foi melhorando, sempre mais questionador, sempre mais voltado para si mesmo, tentando entender o que acontecia no mundo e no seu entorno”.

Raul Seixas enfrentou o alcoolismo e teve vários problemas de saúde provocados pela doença, como diabetes, hipertensão, problemas no fígado e a pancreatite que o levou à morte, em 1989, aos 44 anos, vítima de uma parada cardíaca. Ele foi encontrado morto no apartamento em que vivia, em São Paulo.

Passeatas

Desde então, fãs e admiradores da obra reúnem-se anualmente na data para a conhecida Passeata Raulseixista em homenagem ao cantor e compositor. A concentração geralmente acontece em frente ao Theatro Municipal de São Paulo.

A assessora de imprensa Mayara Grosso, 30 anos, começou a participar do evento aos 8 anos de idade, levada pelos pais, fãs do cantor. Familiarizada com a obra, já que seu irmão mais velho ouvia os discos com frequência, ela cresceu frequentando a passeata anualmente e conhecendo muitos dos fãs que se tornaram amigos de sua família.

Foi daí que surgiu a ideia de, como trabalho de conclusão de curso, escrever um livro-reportagem chamado A Semente da Nova Idade, que aborda a trajetória de Raul Seixas, com ênfase na passeata raulseixista.

“Durante esse processo, eu fui descobrindo e entendendo a história de muitos fãs. Além de uma celebração de Raul, virou também um grande encontro de amigos. É onde a galera se encontra. Então, vem muita gente de muitos estados, cidades diferentes e acaba virando um grande culto. É uma emoção muito particular para cada um, porque Raul Seixas representa muita coisa. Para mim, representa família. É uma memória que pega bastante, porque meu pai já faleceu e gostava muito de ir à passeata”.


Edição:
Vinicius Lisboa

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