Vamos em frente
Por Silvia Almeida* - Agência De Notícias Da Aids - 30/12/2025 17:51:48 | Foto: Divulgação
O maior presente que os trabalhadores e trabalhadoras da saúde pública do Brasil construíram, divulgaram e tornaram público em 2025 foi a certificação concedida pela Organização Pan-Americana da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde que reconheceu e atestou a eliminação da transmissão vertical do HIV em nosso país. Essa certificação não é apenas um selo técnico nem um dado estatístico a ser comemorado em relatórios. Ela representa décadas de luta, investimento em políticas públicas, fortalecimento do Sistema Único de Saúde e, sobretudo, a resistência de milhares de mulheres que viveram a maternidade atravessadas pelo medo, pelo estigma e pela responsabilização injusta. É uma conquista coletiva, construída com ciência, cuidado e participação social.
Aqui, eu escrevo como mulher vivendo com HIV há 30 anos. Como mãe. Como avó, ativista e como integrante da equipe nacional de validação da eliminação da transmissão vertical do HIV e da sífilis. Escrevo a partir de uma trajetória que mistura dor, sobrevivência e esperança. Sempre digo que a minha primeira grande vitória contra a aids não foi um medicamento nem um exame, mas a notícia de que meu filho não havia se infectado pelo HIV. Naquele momento, compreendi que a vida e a esperança podiam vencer o medo.
Casei-me aos 18 anos, grávida do meu primeiro namorado, com quem vivi quase duas décadas de história entre namoro e casamento. Aos 30 anos, em 1994, recebi o diagnóstico de HIV depois que meu marido adoeceu gravemente. Nosso filho mais novo tinha um ano e meio e nossa filha mais velha, 14 anos. Vivíamos o auge da epidemia de aids, em um tempo de pouca informação, diagnóstico tardio e quase nenhuma possibilidade de tratamento. Falava-se em “grupo de risco” como se o vírus escolhesse pessoas. Nós éramos um casal heterossexual, com uma vida considerada estável, e nada daquilo parecia fazer sentido até se impor de forma brutal.
O meu maior medo não era por mim. Era pelo meu filho. E ele não se infectou. Hoje sei que aquilo foi resultado de uma combinação de fatores, inclusive do tempo da infecção no meu corpo, mas, naquele dia, eu entendi algo fundamental: a prevenção funciona. O cuidado funciona. O SUS funciona porque acolhe sem julgar, respeita os direitos das pessoas à saúde. Elas precisam apenas descobrir e acessar os serviços.
Ver meu marido adoecer e morrer foi uma um momento devastador. Ele era um homem carinhoso, um excelente pai, alguém com quem construí a vida. Foi muito difícil sair da responsabilização para a compreensão. Esse foi o caminho que escolhi. Com o apoio de organizações da sociedade civil, compreendi que não havia culpados. Todos éramos vítimas de uma epidemia que chegou antes da informação, antes da prevenção e antes do cuidado. O conceito de grupo de risco caiu por terra dentro da minha própria história, e isso transformou a minha dor em ação.
Já cheguei a tomar 30 comprimidos por dia, fiquei internada, perdi cabelo, senti medo. Muito medo. Hoje, estou indetectável há 25 anos, nunca adoeci de aids e sigo vivendo plenamente. Sou aposentada, ativista, moro no interior de São Paulo e sou avó de quatro netos. A ciência salvou a minha vida, e é preciso repetir quantas vezes forem necessárias: quem vive com HIV, faz tratamento corretamente e está com carga viral indetectável não transmite o vírus. Essa informação salva vidas e combate o estigma.
Integrar a equipe nacional de validação da eliminação da transmissão vertical do HIV há 3 anos é uma honra e uma enorme responsabilidade. Nesse período, pude conversar e olhar nos olhos de muitas gestantes e puérperas, de diferentes municípios do Brasil, vivendo com HIV, e dizer com convicção: você pode cuidar do seu filho, sem adoecer e sem que ele adoeça. Nós podemos. Lutamos há mais de 40 anos para que isso seja uma realidade — e seguiremos firmes nesse propósito. É fundamental também falar sobre os direitos dessas mulheres, fortalecendo seu empoderamento. Garantir informação sobre seus direitos, o acesso aos serviços de saúde, ao tratamento e a uma vida plena.
O processo de certificação não é automático nem simbólico. Ele exige rigor, análise detalhada de dados, avaliação da qualidade do cuidado, escuta dos territórios e compromisso ético com a verdade. A presença de mulheres vivendo com HIV nesse processo não é decorativa. É política. Nós sabemos, na pele, o que significa um pré-natal sem acolhimento, um serviço que julga, um direito que não chega.
A certificação reconhece que o Brasil conseguiu interromper a transmissão vertical do HIV como problema de saúde pública, mas não significa que o desafio acabou. Ainda temos cerca de 150 crianças vivendo com HIV no país. Cada uma delas nos lembra que eliminação não é erradicação. É compromisso permanente. É vigilância contínua. É garantia de financiamento, de acesso ao pré-natal de qualidade, de testagem oportuna, de tratamento adequado e de enfrentamento às desigualdades que atravessam o gênero, a raça, o território e a classe social.
Com essa certificação, o Brasil se soma a outros países reconhecidos internacionalmente, como Cuba, demonstrando que é possível enfrentar uma epidemia com políticas públicas baseadas em ciência, direitos humanos e participação social. Mas nenhuma conquista é definitiva. Precisamos fortalecer o SUS todos os dias, investir em educação sexual, promover o diálogo, fortalecer a autoestima das mulheres e ampliar o acesso às estratégias de prevenção combinada.
A PrEP é um avanço extraordinário e precisa, sim, ser expandida, inclusive para mulheres em situação de violência. Mas não podemos abandonar o preservativo nem silenciar sobre outras infecções sexualmente transmissíveis. Prevenção não é escolha única. É conjunto, é cuidado, é responsabilidade compartilhada.
Celebramos essa certificação com orgulho, mas seguimos vigilantes. Para que nenhuma mulher tenha medo de engravidar. Para que nenhuma criança seja infectada por falhas evitáveis. Para que nenhuma pessoa vivendo com HIV seja silenciada pelo estigma. Eu sou Silvia Almeida, mulher vivendo com HIV há 30 anos, mãe, avó e ativista. E sigo acreditando que, quando o cuidado chega, a vida vence.
Vamos em frente: ampliar e manter essa conquista. Enfrentar os desafios para que vida, continue sempre vencendo! Um próspero e saudável Ano-novo para você!
* Silvia Almeida integra o Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas.
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