Em vez de tratar pacientes e prescrever remédios, ramo da medicina usa números e modelos estatísticos para entender como as doenças se espalham. Veja o que eles revelam sobre o covid-19
Estadão Conteúdo - 02/02/2021 08:31:40 | Foto: Reprodução
Um vírus acaba de sofrer uma mutação e salta de um animal para um ser humano. A partir desse primeiro caso, novas pessoas são infectadas. A cada punhado de dias, a doença aumenta de tamanho. No processo, vai deixando mortos pelo caminho.
Tudo isso pode ser descrito por uma fórmula – e fazer isso ajuda a entender melhor como a epidemia funciona e como é possível contê-la.
Encontrar e analisar estas equações é o trabalho dos epidemiologistas matemáticos, pesquisadores que usam estatística para compreender como as doenças se comportam – mas não no corpo de um único paciente. Para esses cientistas, o foco é coletivo e quantitativo.
Essa matéria tem uma série de complexidades que, se explicadas minuciosamente, tornariam o texto muito chato. Entretanto, elas são importantes! Sempre que este símbolo aparecer, você pode clicar nele para ver detalhes sobre algum tópico.
Processar e entender números é importante em situações de crise, como na atual epidemia de covid-19 – a doença causada pela nova variante de coronavírus que surgiu na China e se espalhou pelo mundo a partir de dezembro de 2019.
Ao calcular valores de nome estranho como número básico de reprodução, intervalo serial e razão caso-fatalidade, é possível estimar o impacto que uma doença pode ter.
No início de uma epidemia, esses números costumam ser bastante incertos, já que variam de acordo com fatores sociais, culturais e ambientais. Além disso, os modelos de verdade costumam levar em conta inúmeros outros indicadores.
Esses três dados não servem, sozinhos, para fazer nenhuma previsão precisa. Entretanto, já ajudam a entender melhor o que é uma epidemia, como ela nasce e quais são as possíveis estratégias para combatê-la.
A partir de agora, vamos explicar o que eles significam e como eles podem revelar caminhos para conter uma crise de saúde pública. Além disso, você também vai aprender um pouco mais sobre a covid-19 e como ela se comporta, quando comparada com outras doenças.
Um dos passos fundamentais para descobrir o quanto uma doença pode se espalhar é descobrir o quão contagiosa ela é.
Uma maneira de fazer isso é contar quantos novos casos de infecção se originam, na média, a partir de uma pessoa que já esteja infectadaa. Esse é o número básico de reprodução, que geralmente é abreviado como R0.
Se uma epidemia hipotética tem um R0 de 2, por exemplo, um primeiro infectado vai passar a doença para outros dois. Esses, por sua vez, passariam para mais dois cada, e assim por diante.
O valor, claro, é uma aproximação. Na realidade, alguns dos infectados não vão passar a doença para mais ninguém. Há também pessoas que são consideradas super-transmissoras, já que interagem com muito mais pessoas e, assim, infectam muito mais que a média. Além disso, o número costuma mudar de acordo com o comportamento da população que está em contato com o patógeno.
Ainda que essas variações aconteçam, o R0 é importante por um motivo: quando ele está acima de 1 (ou seja, quando a média de novos casos que surgem a partir de uma infecção é maior que um), a doença tende a se espalhar. Já quando o número básico cai abaixo de 1, a epidemia começa a desaparecer.
Quando o R0 é maior do que 1, a epidemia tem condições de se espalhar, uma vez que cada pessoa com o vírus vai, provavelmente, infectar mais alguém
Quando o R0 está abaixo de 1, a lógica se inverte: a tendência é de que os portadores do vírus não infectem mais ninguém. Asism, a doença desparece com o tempo
Quando uma doença começa a se espalhar, geralmente são feitos esforços para conter a disseminação do vírus – o que, na prática, significa reduzir esse número.
Entre as maneiras de alcançar essa redução estão o estímulo a medidas de higiene, como lavar as mãos com frequência, e a detecção e isolamento rápido de pessoas com suspeita de contágio.
Além destas medidas, que podem ser implementadas de imediato, o desenvolvimento de uma vacina é a forma mais eficaz de conter as transmissões.
Agora que já entendemos como esse número explica a disseminação de uma doença, podemos ir para a parte prática: qual é a capacidade de contágio da covid-19, afinal?
A resposta ainda é incerta, mas estudos preliminares indicam que o valor estava entre 2 e 4 no mês inicial do surto, na China.
Para demonstrar o que isso significa, vamos adotar o valor de 2.6, que foi calculado por cientistas do Imperial College London no final de janeiro.
Os gráficos abaixo comparam o potencial de disseminação do novo coronavírus com outras doenças que são transmitidas da mesma maneira, pelo ar.
Covid-19
2ª geração
R0: 2.6
O R0 do novo coronavírus parece ser mais alto que o das gripes comuns, o que faz com que ele se espalhe de forma mais eficaz
2ª geração
R0: 1.5
A gripe, doença causada por variantes do vírus influenza, se espalha de forma mais lenta que a covid-19, já que tem um R0 ligeiramente menor
2ª geração
R0: 15
Hoje, o sarampo está relativamente controlado graças à vacinação. Entretanto,a doença tem uma capacidade de reprodução cerca de dez vezes maior que a gripe diante de uma população sem imunidade
É importante ressaltar, porém, que o número básico de reprodução costuma se alterar ao longo do desenrolar de uma epidemia, devido a melhorias nos métodos de diagnóstico e ao investimento em estratégias de contenção.
Uma previsão feita com base apenas no R0 calculado nos dias iniciais de um surto pode superestimar o número de casos.
Tempo
Acabamos de ver que o R0 dá um indicativo de quão contagiosa uma doença pode ser. Entretanto, ele mede apenas a quantidade de novos casos que podem surgir a partir de uma pessoa infectada, sem se preocupar com o tempoque esse processo leva para acontecer.
Há uma estatística que leva em consideração essa outra dimensão: o intervalo serial (SI, na sigla em inglês), que é a quantidade de tempo que demora, na média, para que um desses novos infectados manifeste sintomas.
Assim, quando o intervalo serial é menor, a doença tende a se espalhar mais rápido entre a população, já que leva menos tempo para que as gerações do vírus se multipliquem.
Pelo contrário, quando ele é maior, o intervalo entre o primeiro contágio e os próximos casos é mais longo, o que tende a tornar mais lenta a disseminação da epidemia.
Em conjunto com o R0, o intervalo serial revela quantas infecções poderiam surgir em determinado período, caso nenhuma medida de contenção fosse tomada e a população não desenvolvesse forma alguma de imunidade.
Com mais essas informações, podemos atualizar o gráfico comparativo que vimos há pouco. Agora, vamos estimar quantas pessoas poderiam ser infectadas por cada uma das doenças em 30 dias.
Covid-19
Dia 11
3ª geração
R0: 2.6 | SI: 4.4
Embora a capacidade de contágio do novo coronavírus seja maior que a dos vírus da gripe, demora mais para que os sintomas apareçam na nova geração de infectados
Dia 11
4ª geração
R0: 1.5 | SI: 2.8
No caso da gripe, a dinâmica se inverte: apesar da doença ser um pouco menos contagiosa, costuma se espalhar de forma ligeiramente mais rápida
Dia 11
1ª geração
R0: 15 | SI: 11.7
Já o sarampo demora um tempo significativo para passar de uma pessoa para outra. Isso compensa seu R0 elevado, fazendo com que a doença não se espalhe de forma tão veloz
O intervalo serial, ao contrário do R0, não pode ser controlado por intervenções humanas, já que ele depende de fatores biológicos característicos da doença.
Entretanto, nem sempre um intervalo serial mais longo é positivo, já que pode ser necessário adotar medidas de contenção – como quarentena, por exemplo – durante um tempo maior.
Mortes
Para muitas pessoas, este é o parâmetro que mais assusta: caso eu pegue a doença, que chance tenho de acabar morrendo? A questão parece simples, mas a resposta é complicada.
O indicador que, em tese, responde a essa pergunta é a razão caso-fatalidade(CFR, na sigla em inglês): trata-se do porcentual de pessoas, entre aquelas com casos confirmados de uma doença, que morrem.
Como já calculamos o potencial de contágio em 30 dias de algumas doenças, podemos ver qual seria, na teoria, a letalidade de cada uma delas.
No próximo gráfico, os pontos vermelhos simbolizam uma pessoa que contraiu o vírus e morreu.
Note que, nessa simulação, 4 pessoas morreram depois de contrair a covid-19, mas não aconteceram mortes por sarampo ou gripe. Isso aconte porque a fatalidade da atual epidemia é mais elevada.
Dia 11
3ª geração
R0: 2.6 | SI: 4.4 | CFR: 2.3%
A fatalidade da covid-19 varia bastante entre diferentes faixas etárias e dispara nos grupos de risco. Em fevereiro, o Centro de Prevenção de Doenças do governo chinês calculava uma CFR de aproximadamente 2.3% na população em geral
Dia 11
4ª geração
R0: 1.5 | SI: 2.8 | CFR: 0.02%
Em surtos de gripe, a mortalidade costuma ser menor. Pesquisadores da OMS e do Imperial College London estimam que a taxa de fatalidade do surto de H1N1 de 2009, que ficou conhecido como gripe suína, foi de 0.02%, por exemplo
Dia 11
1ª geração
R0: 15 | SI: 11.7 | CFR: 0.2%
Além de contagioso, o sarampo também costuma ser mais mortal que a gripe. A complicação mais letal da doença, ainda que rara, é a encefalite – ou seja, a inflamação de uma parte do cérebro. Caso isso ocorra, a mortalidade salta para 15%.
Esse número, entretanto, tem uma série de limitações. Um dos problemas é a possibilidade de subdiagnóstico, como pode ter ocorrido no início da crise do novo coronavírus.
Quando a maioria dos casos de uma doença é leve, apenas os pacientes em estado mais grave – e, portanto, com sintomas mais evidentes – acabam contabilizados. Assim, a taxa aumenta artificialmente, já que apenas os quadros mais críticos entram na conta.
Outro fator é a alta variação no valor da CFR. Como taxa é calculada levando em consideração todos os casos descobertos, o número não considera que uma doença pode atingir alguns grupos de forma mais intensa.
A própria covid-19 é um exemplo disso, já que a mortalidade costuma ser maior entre pessoas mais velhas ou que tenham algum problema de saúde prévio.
Um estudo feito com base em 72 mil casos da doença observados na China mostra que a mortalidade em pessoas com mais de 80 anos chega a quase 15%, por exemplo.
Reduzir a mortalidade de uma epidemia passa por eficiência e velocidade no atendimento hospitalar, mas também por proteger grupos de risco como esse. Essa eficácia, combinada com estratégias de contenção e prevenção, ajudam a diminuir os danos causados pela doença.
Não parece, mas tudo isso, no final das contas, é matemática.
Agradecimentos
Agradecemos aos pesquisadores Cláudio Struchiner (Escola de Matmética Aplicada, FGV), Cláudia Codeço e Daniel Villela (ambos do Programa de Computação Científica da Fiocruz) pelos esclarecimentos técnicos e observações valiosas que ofereceram durante o desenvolvimento desta matéria.
Código aberto
O código-fonte que alimenta os gráficos desta matéria está disponível no GitHub do Estadão.
Expediente
Editor Executivo Multimídia
Fabio Sales
Editora de Infografia Multimídia
Regina Elisabeth Silva
Editor Assistente Multimídia
Carlos Marin
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