Luciano Cadima deixou a estabilidade de 25 anos na mesma empresa, voltou a estudar e se descobriu no trabalho com investimentos, que rende cinco vezes maisArquivo pessoal
Estadão Conteúdo - 27/02/2021 11:28:40 | Foto: Arquivo pessoal
Com a perfeição de quem se debruça sobre o mesmo ofício há 28 anos, a manicure Maria do Socorro capricha na francesinha da última cliente do dia no Club N Salão, em Moema, zona sul de São Paulo: a pontinha das unhas ganha uma faixa branca. No fim do expediente, pega dois ônibus para chegar em casa, na Vila Leopoldina, na zona oeste. Ela vai feliz. É aí que seu dia começa de verdade. A manicure também canta e compõe letras de samba e MPB. Durante a pandemia , a cearense de Juazeiro do Norte está virando sua rotina de cabeça para baixo. Aos 47 anos, Maria do Socorro passa por um novo batismo para ser a cantora Maria Sol.
Em algum momento desta longa pandemia, você já deve ter se perguntado: “E se eu mudasse o rumo da minha vida?”. Este período de exceção, que para nós já dura um ano, colocou vários pontos de interrogação na nossa cabeça. Em maior ou menor grau, muita gente está revendo o que considera mais importante. Muita gente mesmo. Pesquisa da consultoria global de estratégia Oliver Wyman, com dados revelados com exclusividade no Brasil pelo Estadão, aponta que quase metade da população, ou 44% dos brasileiros, estabeleceu novas prioridades após a explosão do coronavírus .
O levantamento vem sendo realizado em dez países, incluindo o Brasil , com dados coletados em fases desde agosto. Foram ouvidas mais de 43 mil pessoas no mundo todo, com cerca de 4 mil em cada nação. Na média dos demais países, o porcentual dos que dizem que a pandemia ajudou a reavaliar o que é realmente importante é menor: 37%. Esses números grandões são feitos de partículas individuais e tangíveis.
Mergulhei totalmente na música e me transformei 100%”
Maria do Socorro, manicure, cantora e compositora
Em 2020, Maria Sol fez oito músicas em parceria com o compositor Antônio Modesti. Suas apresentações também estão no YouTube, mas os números são modestos, de quem está começando mesmo. A mais popular tem quase 5 mil visualizações. O próximo passo, ela conta, é o lançamento das canções na plataforma de streaming Spotify.
A mudança de vida não é uma regra, depende da realidade de cada pessoa. Além disso, o peteleco dado pela pandemia nem sempre é essa guinada, 8 ou 80. O mergulho pode ser um estímulo para viver a mesma vida, mas de um jeito diferente. Em outros casos, é preciso fazer novas escolhas a partir de um contexto diferente. É o que aconteceu com a atendente de loja Mainara Silva, que teve de mudar sua vida depois que seu primeiro filho nasceu. Mas ainda não é a hora de falar dela.
A psicóloga Adriana Severine tem ouvido muitos relatos assim em seu consultório. Ela é especializada em terapia cognitiva comportamental, vertente que estimula os pacientes a encontrar soluções para seus problemas. “Esses casos de reflexão e mudança aumentaram muito na pandemia. Alguns passaram a ficar mais tempo com suas famílias. Outros passaram a se dedicar a estudar mais. Outras pessoas resolveram mudar aspectos que estavam incomodando”.
Como você está se sentindo em relação ao futuro?
COMPARE COM A PESQUISA
Qual frase mais reflete o seu pensamento hoje?
COMPARE COM A PESQUISA
É mais ou menos o que está acontecendo com a microempresária Verônica Oliveira. Seu problema sempre foi a balança. De dezembro a março, havia engordado dois quilos. Com a chegada da pandemia, o isolamento e a queda nas vendas de bolos e cestas de café da manhã fizeram com que saísse do prumo. De março a maio, engordou mais 10 quilos. Aos 37 anos, a moradora do Imirim, na zona norte da capital paulista, chegou aos 78 quilos. Ela tem 1,48m de altura.
Os problemas físicos e emocionais cresceram na mesma proporção. Excesso de gordura no fígado, dificuldade de mobilidade – ela não conseguia nem brincar com o filho menor –, tendinite, dores na coluna e tristeza. A mudança de vida começou com uma cirurgia bariátrica feita pelo convênio médico. Em quatro meses, ela conseguiu passar por todas as etapas de preparação. Deu tudo certo. Ou melhor, está dando tudo certo. Com 20 quilos a menos, ela diz que está no meio do processo. Os próximos passos são a estabilização do peso e as cirurgias reparadoras. Ela ainda quer chegar aos 45 quilos.
O projeto de vida da gestora de tráfego digital Beatriz Gabriel era morar no litoral norte de São Paulo. Com a aceleração da transformação digital trazida pela pandemia, a ideia saiu daquela prateleira mais alta, que quase não dá para alcançar, para virar realidade. Aos 32 anos, colocou seu escritório na Praia de Boiçucanga: home office com um rio no quintal. Ela queria também ter uma casa cheia de amigos – meta que pretende deixar na prateleira até o fim da pandemia. Para acalmar a solidão, adotou uma boxer , Filipa.
Juntas, Verônica, Maria Sol e Beatriz ilustram outro dado da pesquisa. A percepção da pandemia muda de acordo com diferentes grupos sociais. No recorte por gênero, por exemplo, a reavaliação de prioridades é mais significativa entre as mulheres. Quase metade da população feminina, ou mais precisamente 48%, afirma que a pandemia ajudou a reavaliar suas prioridades. No caso dos homens, o número gira em torno de 40%.
O investidor Luciano Cadima, de 42 anos, é um representante desse segmento. Ele decidiu abrir mão de um emprego estável de 25 anos em uma empresa de seguros para estudar e trabalhar com investimentos . Hoje, ele ganha cinco vezes mais. E está feliz. “Essa pandemia me fez refletir que a vida passa rápido demais e precisamos fazer aquilo que gostamos”, diz o morador da Serra da Cantareira, na zona norte de São Paulo.
A pandemia foi o start para uma nova vida”
Luciano Cadima, investidor
A pandemia relativiza até o conceito de prioridade. É importante destacar que a faixa de renda interfere pouco na mudança de comportamento frente à pandemia. Independentemente do holerite, o porcentual de concordância com a frase “O que está acontecendo me ajudou a reavaliar o que realmente importa para mim” gira em torno de 30%.
É aqui que entra a história da Mainara, que começou nos parágrafos anteriores. Moradora de Vigário Geral, comunidade da zona norte do Rio, Mainara foi obrigada a rever seus sonhos após o nascimento do filho Caleb, que está com 9 meses. Em janeiro, ela iniciou um curso de programação na Afrogames, primeiro centro de treinamento de jogos eletrônicos em uma favela brasileira.
Depois de um mês estudando, contudo, tem dificuldades para continuar a saga: precisa arrumar um emprego para ajudar na renda da casa. Hoje, apenas a mãe, costureira, segura as pontas. “Temos muitas dificuldades na comunidade. Uma delas é que os meninos entram para a vida do crime muito cedo e não têm muitas oportunidades”, conta Mainara. “Outros têm de escolher entre trabalhar e estudar. Meu sonho é que meu filho consiga se formar e que seja um trabalhador digno.” Ela reconhece que suas prioridades se transformaram para garantir o futuro do filho.
Psicólogos, psicanalistas e filósofos apresentam teorias semelhantes para o desejo de mudança: o desconforto com a morte. O consenso não tem peso estatístico, mas sugere uma linha: passamos a nos perguntar para onde vamos ou pretendemos ir. “A pandemia trouxe esse assunto para a sala e ficou difícil ignorar que somos finitos”, diz a psicóloga Adriana Severine. “Essa fragilidade exposta tão claramente agiu como um motor propulsor para que as pessoas tivessem a coragem de mudar.”
As pessoas estão buscando uma vida que tenha mais sentido, que não precisa ser mais rica materialmente”
Renato Janine Ribeiro, filósofo e escritor
As coisas que a gente dá valor se mostram no momento de vacas magras e de aflição. Essa é a visão do psicanalista Christian Dunker , professor do Instituto de Psicologia da USP. Quando a vida caminha em harmonia, a gente tende a aumentar o nível de complexidade e a perder de vista o que é, de fato, importante. “A pandemia avisou para todos nós o que já sabíamos: vamos morrer”, resume.
O filósofo e escritor Renato Janine Ribeiro acrescenta às reflexões sobre finitude o desejo de uma vida mais relevante. “A questão da morte coloca as pessoas diante de uma reavaliação. Diante desse balanço, você pode ficar satisfeito ou insatisfeito. O que ficou mais evidente é a busca de significação”, explica o filósofo. “As pessoas estão buscando uma vida que tenha mais sentido, que não precisa ser mais rica materialmente. O que adianta ter um carro do ano se você não tem muito o que fazer com ele?”
Dunker avalia que a reflexão, em geral, percorre alguns degraus. O primeiro é o sofrimento, a angústia com o que estamos vivendo. O segundo é a nossa teoria sobre esse sofrimento, como explicamos o que está acontecendo. Se a explicação for satisfatória, tudo fica como está. O terceiro é o ato, aquele momento em que a gente decide agir e fazer uma coisa diferente. Pode ser uma transformação interna, do mundo ou uma ação da nossa relação com os outros.
Marina Gontijo, diretora da Oliver Wyman
Crise da covid-19 foi mais forte no Brasil, com perda de renda e alta de dívidas; ao mesmo tempo, País é o que vê o futuro de forma mais positiva
A crise econômica trazida pela covid-19 pegou o mundo de surpresa. Com um alto índice de informalidade, os brasileiros estão entre os que mais sofreram. Muitos viram sua renda cair e tiveram de focar nas necessidades básicas, fazendo cortes de despesas, em um movimento mais severo do que nos outros nove países incluídos na pesquisa sobre sentimento do consumidor na pandemia realizada pela consultoria Oliver Wyman.
Segundo Marina Gontijo, diretora da Oliver Wyman, o comportamento do brasileiro mostra dois extremos: o grande desânimo em relação ao momento atual, com contas atrasadas e falta de perspectiva, e a tendência de projetar um futuro com perspectivas otimistas. “O brasileiro está muito bem ou está muito mal. Esse é um ponto que fica muito claro.”
Além de tendências de consumo, o amplo levantamento também aponta algo sobre o sentimento atual do brasileiro: a desconfiança. “O brasileiro não está confiando em ninguém, seja no governo federal, no governo local, na mídia ou nas redes sociais”, diz Marina. “As pessoas dizem apenas confiar em pessoas como elas. Por isso, buscam ajuda só com os amigos, com a família. É um pouco preocupante.”
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:
● No que o Brasil mais se assemelhou e no que mais se diferenciou em relação ao resto do mundo nesta pesquisa sobre o mundo pós-covid?
Fica claro, no comportamento do brasileiro, que é mais extremo nas respostas. Quando a gente pergunta ‘Como você está se sentindo em relação à sua saúde financeira?’, o brasileiro está sempre muito bem ou muito mal. Nos outros países, isso é um pouco mais equilibrado. O Brasil também é um dos mais impactados pela pandemia em redução de renda e de poupança, e de aumento das dívidas de curto e de longo prazos. O corte nos gastos foi muito maior no Brasil do que na média dos dez países pesquisados. O Brasil está sempre perto do México, mas ainda assim um pouco pior. Mas quando a gente pergunta sobre otimismo para o futuro, é o mais otimista. Isso apesar da incerteza atual: mais de 40% das pessoas não sabem se vão conseguir pagar as contas.
● O brasileiro tem histórico de poupar pouco, mas pesquisa mostra uma disposição em ser mais responsável com o dinheiro. Pode ser uma mudança de longo prazo?
Trata-se de uma intenção de poupar mais. Tornar isso realidade é um caminho longo. A gente não sabe se as pessoas terão condições de poupar mais. A pesquisa tentou olhar para mudanças no comportamento do consumidor. E detectamos uma mudança na forma de investir e de poupar. As pessoas passaram a fazer isso online e, em geral, preferem esse modelo. No Brasil, isso aparece com mais força do que em outros países. E aí já dá para prever que há um sentido de permanência nesse comportamento.
● Quais outros comportamentos adotados na pandemia o consumidor deve manter?
No entretenimento, por exemplo. Os serviços de streaming cresceram muito na pandemia – e essa é uma tendência que veio para ficar, pois as pessoas até ampliaram os gastos nesse setor neste período. As pessoas mudaram porque gostam da conveniência dessas alternativas e estão extremamente satisfeitas com elas. E dizem que não querem voltar ao modelo anterior - de consumo predominantemente fora de casa. Então, essa é uma mudança que está chegando para ficar.
● E o que o consumidor quer voltar a fazer, assim que a vacina chegar?
As pessoas querem voltar a viajar, no modelo anterior à pandemia – e não estão satisfeitas com as alternativas que ficaram disponíveis durante este período (como as viagens mais curtas, geralmente feitas de carro). Se conseguirem tomar vacina, as pessoas vão querer voltar a viajar com mais frequência de avião. Ou seja, o turismo é algo que tende a voltar. Mas haverá uma substituição das viagens de trabalho, até porque ferramentas como Zoom e Teams mostraram que parte do que se gastava com isso era desnecessário.
● Olhando para o alto índice de cortes de gastos, dá para dizer que o brasileiro, hoje, foca nas necessidades mais básicas?
O corte de gastos foi muito mais forte em itens não essenciais. No Brasil, quase 50% afirmam ter reduzido gastos – é um porcentual muito acima dos outros países da amostra. Isso está relacionado à perda de renda, mas também à revisão do que é seguro ou não durante a pandemia. Alguns gastos vão acabar voltando depois da vacina. É o caso do turismo e também de serviços como academia. Por outro lado, muita gente diminuiu os gastos em educação. Ou a pessoa desistiu do que estava fazendo ou simplesmente mudou para opções mais baratas, como aulas online. Para alguns setores, o corte tende a permanecer mesmo depois da pandemia.
● A pesquisa mostra, ainda, uma tendência do brasileiro em resistir a pedir ajuda de profissionais ou a se apoiar em fontes oficiais. Como isso ocorre?
No que se refere a investimentos, por exemplo, as pessoas ainda buscam ajuda de amigos, e não de profissionais. É uma característica muito típica do Brasil. Ao mesmo tempo, o brasileiro não está confiando em ninguém, seja no governo federal, no governo local, na mídia ou nas redes sociais. As pessoas dizem apenas confiar em pessoas como elas. Por isso, buscam ajuda só com os amigos, com a família. E isso é um pouco preocupante.
● Ficou claro que os brasileiros se preocupam com a carreira. O impacto é semelhante entre os grupos?
A pandemia afetou as pessoas de uma maneira muito heterogênea, algo também mais evidente nas respostas dos brasileiros. De forma geral, teve muita gente perdendo o emprego e sentindo o impacto na renda. Mas as mulheres, por exemplo, sofreram mais do que os homens. Quando a gente olha para as pessoas que estão buscando apoio à saúde mental, o peso maior é das questões financeiras e de trabalho. As pessoas estão estressadas com a carreira.
● As pessoas estão vendo algum aspecto positivo da pandemia?
O relacionamento com a família ficou mais próximo e as pessoas também veem uma melhora na questão espiritual. A busca desse tipo de conforto é muito maior no brasileiro do que com os outros países – talvez isso possa ser relacionado à taxa de otimismo também fora da curva que o brasileiro tem.
Coordenação Carla Miranda e Alexandre Calais / Edição / Alexandre Calais, Ana Paula Boni, Bia Reis e Tatiana Gerasimenko Editor executivo multimídia Fabio Sales / Editora de infografia multimídia Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia Adriano Araujo, Carlos Marin e William Mariotto / Ilustrações Marcos Müller / Revisão SEO Igor Truz / Infografistas multimídia Diogo Shiraiwa, Gisele Oliveira, Mauro Girão e Marcos Brito
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