Doação de órgãos. Sigilo para proteção e credibilidade

Lei dos Transplantes impede revelação da identidade de doadores e receptores, mas informações na mídia e na internet facilitam as buscas. Alguns acabam se encontrando

Doação de órgãos. Sigilo para proteção e credibilidade
Doação de órgãos. Sigilo para proteção e credibilidade

Cláudia Dianni-correio Braziliense - 07/12/2019 10:25:10 | Foto: Correio Braziliense

Diagnosticada com fibrose pulmonar aos 30 anos, a educadora física Liège Gautério, de Porto Alegre (RS) entrou na lista de espera por um novo pulmão aos 38 anos. Durante e espera, ela chegou a usar oxigênio 24 horas por dia e precisou da ajuda de uma cadeira de rodas. Esperou pelo órgão durante cinco meses. Como seu estado de saúde piorou muito, entrou na lista de prioridade. Em setembro de 2011, chegou o novo pulmão. Pouco tempo depois da cirurgia já se sentia outra pessoa, mas tinha uma curiosidade: quem teria sido a pessoa que lhe devolveu a respiração?

“No dia do transplante, por acaso, meu pai estava navegando na internet e viu uma notícia sobre uma moça de 22 anos, que havia morrido em um acidente de moto, em Bagé (RS), e a família tinha decidido doar os órgãos. Enquanto estava sendo preparada para fazer a cirurgia, no hospital me disseram que o pulmão estava vindo de Bagé. Liguei os pontos. Pesquisei e entrei em contato com a família.

Amiga da mãe da doadora, a educadora física Liège Gautério virou atleta depois de receber um novo pulmão  (Arquivo Pessoal)
Amiga da mãe da doadora, a educadora física Liège Gautério virou atleta depois de receber um novo pulmão


A história de Liège é uma exceção, pois a identidade de doadores e receptores de órgãos é resguardada por lei, conforme estabelece o artigo 52 do Decreto nº 9.195/97, que regulamenta a Lei dos Transplantes, nº 9.434/97.

De acordo com a diretora da Central Estadual de Transplantes do DF, Joseane Vasconcellos, o sigilo tem a finalidade de proteger ambas as partes do ponto de vista ético, jurídico e emocional. Um deles é evitar que famílias doadoras possam tentar se beneficiar financeiramente de receptores sob o argumento de que o órgão do familiar falecido salvou a outra vida. “A legislação é feita prevendo as piores situações. Não quer dizer que elas aconteçam, mas o objetivo é proteger as partes”, explica. “A doação de órgãos é um ato voluntário, ou seja, não se deve esperar nada em troca disso, nem mesmo o afeto do outro, até porque, a curiosidade pode levar o receptor a procurar a família doadora, que pode reviver a situação de luto e isso, nem sempre, é desejável”, afirma.

Reações psíquicas

“O receptor pode desenvolver a fantasia de que o órgão recebido possa interferir em sua trajetória de vida, o que pode desencadear reações positivas ou negativas, podendo até provocar a rejeição orgânica do órgão, a depender do tipo de informação sobre o doador que ele (o receptor) tem acesso, e o efeito dessa informação sobre a sua psique”, explica Graça Maria Marino Totaro, psicóloga especializada em transplantes. “Essas fantasias podem envolver informações relativas ao gênero do receptor, orientação sexual, constituição psíquica ou condições de vida do doador”, exemplifica, e esclarece que as fantasias podem acontecer de forma inconsciente, ou seja, sem que pessoa perceba.

No caso das famílias ou relacionamentos próximos do doador, a curiosidade é menos frequente até porque a depender do caso, a doação dos órgãos pode beneficiar até oito pessoas. A curiosidade e o sentimento de conexão ocorre principalmente no caso do coração, que, simbolicamente, está mais relacionado aos afetos, esclarece a psicóloga. “Isso não ocorre com todas as famílias. Geralmente as famílias doadoras têm o entendimento de que aquela doação é voluntária e para manter outras vivas e não a vida de seu parente no corpo de outro”, diz.

Foi o caso de Shirley da Silvia Telles, de Londrina (PR) quando decidiu doar os órgãos da mãe Idenilda da Silva Telles, quando, há 10 anos, teve morte encefálica, aos 53 anos, depois e cair de uma escada. “Autorizamos a doação, mas nunca nos disseram para quem tinha ido os órgãos, nem quantos tinham sido aproveitados. E nós também nunca perguntamos, mas tenho uma certa curiosidade. Sou cristão e me sinto bem em saber que ajudamos outras pessoas, mesmo sem saber quem. Eu tenho dois filhos e, se um dia um deles precisar de um órgão, eu quero que haja doações”, relata.


Vamos juntas

No caso de Liège, nenhuma das possíveis situações que o sigilo busca evitar ocorreu. Ao contrário, ela desenvolveu uma relação saudável e afetuosa com a possível família doadora. “Nunca me confirmaram, nem no hospital, nem na Central Estadual de Transplantes. Mas eu sei que é ela. Falo com mãe dela por mensagem quase todos os dias. Mando sempre um bom dia, e ela me chama, carinhosamente, de filha número dois. Eu recebi uma vida dos meus pais e uma outra de alguém que eu nem conhecida. É algo muito emocionante”, diz Liège, que desde que recebeu o novo pulmão se dedica a fazer palestras sobre doação de órgãos e a divulgar a causa nas redes sociais. “Descobri o nome da doadora no Facebook de uma amiga dela, onde tinha uma foto. Foi bom para mim, pois hoje eu tenho um rosto para agradecer. Quando vou dar uma palestra, eu chamo ela. Digo: Marilise, vamos lá. Temos mais uma missão”.


DE UM PARA O OUTRO »PR e SC: líderes em doações

Elaine Gomes:
Elaine Gomes: "Pedi alta para morrer em casa, mas o médico disse que havia a possibilidade de um coração"



Veio do interior do Paraná o novo coração que Elaine Gomes, moradora do Gama-DF, recebeu depois de entrar na lista como prioridade nacional, devido à gravidade de seu estado de saúde. Ela desenvolveu insuficiência cardíaca depois de conviver com o vírus da doença de Chagas por mais de 20 anos. Segundo o Ministério da Saúde, estima-se que cerca de 4,6 milhões de brasileiros tenham sido infectadas.

Elaine entrou na lista em outubro de 2014 e foi internada no Instituto de Cardiologia no dia 22. No dia seguinte, foi para a lista de prioridade. “Para mim, eu ia morrer. Estava esperando por isso. Eu estava me despedindo e estava muito triste porque meu filho tinha 13 anos e não podia entrar na UTI. No dia 27 eu pedi alta para o médico para ir para casa, para ver o meu filho antes de morrer. Ele disse que se me desse alta, eu sairia da fila e me pediu que me acalmasse, pois havia a possibilidade de um coração no Paraná. Nesta noite eu consegui dormir, fazia muito tempo que não acontecia”, conta.


No dia seguinte, Elaine foi despertada para ir para o centro cirúrgico. “Meu marido chorava, mas, desta vez, com um sorriso de orelha a orelha”, conta. “É um sentimentos ambíguo. A gente fica muito feliz e, ao mesmo tempo, sente a tristeza pela pessoa que morreu, mas é tudo muito bonito”, conta a irmã, Eliane.

Elaine desenvolveu uma neuropatia periférica, que causa uma dormência do joelho para baixo, consequência da medicação que tem que tomar para não reativar a doença de Chagas e afetar o novo coração. Ela conta que toma 10 medicamentos. Mesmo assim, relata uma nova vida, parte dedicada a ajudar pessoas que estão em fila de espera e à causa da doação de órgãos e mantém um apágina no Facebook e no Instagram, @sou transplantada

Médica coordenadora da Central Estadual de Transplantes do Paraná, Arlene Badoch atribui os resultados do estado, que é o segundo em doação por milhão de pessoas 41,3 (pmp) e o primeiro em realização de transplante, 50,1 (ppm) à investimentos em treinamento das equipes e à comunicação para a conscientização da sociedade. “Temos 22 equipes no estado que são treinados e estão em constante comunicação por vídeio conferência. Temos até uma sala de situação na nossa central”, diz. “Nosso nível de recusa, pelas famílias, é baixo, já é de excelência.

Joel Andrade, médico intensivista e coordenador da Central Estadual de Santa Catarina concorda que os treinamentos são a principal razão para melhorar os resultados. Para ele, educação é mais importante do que campanha. “Os gasto com treinamento dos profissionais mostram resultados efetivos. Os de campanha, não necessariamente”, compara. Segundo ele, Santa Catarina investe R$ 500 milhões por ano em formação profissional voltada para transplantes. “Tínhamos uma taxa de rejeição de 70% em 2007, em 2010 chegamos a 30% e hoje está em torno de 20%. (CD)


DE UM PARA O OUTRO »Decisão vem antes da morte


“É muito importante que as famílias conversem sobre doação de órgãos. No Brasil, a morte é um tabu, portanto, em muitas famílias o assunto é evitado, mas, quando é conversado, fica bem fácil tomar a decisão, até porque é da cultura brasileira realizar a vontade de quem morreu. Isso é muito respeitado”, pondera Joseane Vasconcellos, da Central Estadual de Transplantes do DF.

A lembrança de um diálogo familiar foi o que levou a família de Shirley da Silvia Teles a fazer a doação. “Minha mãe era muito brincalhona. Um dia, eu disse a ela que, se eu morresse, eu queria que doassem meus órgãos. Ela riu e respondeu: ‘doa mesmo, minha filha, o que a gente não usa, tem que dar’. No dia que ela morreu, nós nos lembramos disso”, conta.


“A família está vivendo uma perda que pode ser repentina. O comunicado sobre a possibilidade de doação de órgão, muitas vezes, pode ser uma novidade e, em alguns casos, um lembrete. É importante que a pessoa esteja bem informada sobre o que é a morte encefálica e sobre a condição de seu parente e, mais importante, saber o desejo da pessoa que morreu sobre isso”, afirma a psicóloga Graça Maria Marino Totaro .

Na avaliação de Joseane, o tema doação de órgãos não é polêmico. Para ela, a dificuldade em aumentar as doações está mais relacionada à aceitação da morte. “De um modo geral, os brasileiros lidam mal com a morte. Países que lidam melhor com isso têm mais facilidade para desenvolver a doação. A partir do momento em que a família aceita a morte, não tem tanto problema. Algumas famílias querem que o parente seja enterrado como nasceu, com todos os órgãos. A gente sempre explica que, depois da retirada, o corpo é todo recomposto e ninguém consegue dizer que aquele paciente é um doador”, explica.


Para Graça Maria, a ideia de que a pessoa que morreu possa ter sua imagem alterada pode ser um impeditivo para doação, portanto, tem que ser bem explicado. “A questão da cultura religiosa, a fé ou o que norteia família com relação ao corpo e ao espírito ou alma também é importante. Há crenças, por exemplo, que colocam que o corpo deve estar inteiro para adentrar em outro reino, ou algo assim. Isso é importante e pode interferir na decisão”, diz.

Ela alerta também sobre os cuidados que devem ser adotados na abordagem das famílias. “O importante é não fazer a abordagem com o pressuposto de que a família faça a doação. É preciso considerar o tempo da família e não ter o desejo de que a família doe. Isso é muito perigoso e pode impossibilitar a doação, pois o desejo não é da família, mas de quem está abordando. Mas isso é incomum. No geral, as pessoas que são treinadas e não mobilizadas pelo seu desejo, mas com a escuta”, diz. “A doação deve ser sempre voluntária. A pessoa deve ser abordada e não convencida”, completa Joseane.

Tráfego

Um dos mitos que podem frear a doação de órgãos é a desconfiança sobre o possível comércio e tráfego de órgãos que, para médicos e especialistas, é um mito desenvolvido pela sociedade por falta de informação e conhecimento do sistema de transplantes e doação de órgãos. “Não existe tráfego de órgão no país. Temos um sistema muito fechado. O transplante envolve cirurgias que não são simples. Depende de toda uma estrutura para cuidar do corpo do doador, fazer a extração do órgão em centro cirúrgico. Todo o processo envolve toda uma complexa logística. Para definir para quem vai o órgão, temos um sistema informatizado que o Brasil inteiro utiliza. É muito bem estruturado. Não tem como fazer isso fora do sistema e manter sob sigilo”, esclarece Daniela Ferreira Salomão, da coordenadora do Sistema Nacional de Transplantes do Ministério da Saúde. (CD)

  • Os maiores doadores
    Com investimento em treinamentro das equipes, Paraná e Santa Catarina têm as maiores taxas de doação

    Estado Doação por PMP* Famílias que disseram não (%)
    AC 4,6 73
    AL 5,2 44
    AP 0,0 100
    AM 2,6 72
    BA 11,0 54
    CE 26,9 38
    DF 17,5 28
    ES 11,1 54
    GO 11,2 68
    MT 1,2 67
    MS 18,4 58
    MG 13,8 38
    PA 2,7 60
    PB 3,7 56
    PR 41,4 26
    PE 20,1 37
    PI 1,6 88
    RJ 17,2 31
    RN 19,9 57
    RS 21,4 41
    RO 15,9 30
    RR 2,3 60
    SC 44,5 26
    SP 23,7 37
    SE 7,0 63
    TO 0,9 67

    Fonte: Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) *Pessoas por milhão

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