Muito barulho por nada

Em uma curta jornada.

Muito barulho por nada
Muito barulho por nada

Por Sílvia Guerra[1] - 28/05/2023 19:14:07 | Foto: Reprodução Por Sílvia Guerra[1]

aqui..

Estamos em Verona eu e Carlos Fernando já caminhando para a terceira etapa de nossa viagem. Mas hoje aconteceu uma coisa tão engraçada, que tive vontade de parar pra escrever e registrar. No entanto, acho que vale a pena contar um pouco de nossa viagem até aqui porque temos visto tanta coisa interessante, que pensei em compartilhar.

Maio chegou e o dia da viagem cada vez mais se aproximava. Sempre viajar traz muitas emoções e uma pausa na rotina do nosso dia-a-dia. Finalmente, chegou o esperado dia e lá fomos eu, meu marido e eu, viajar por três semanas fora do Brasil.

No dia seguinte, logo cedo pela manhã, estávamos em Amsterdã. Aquela cidade coberta de tulipas das mais diversas cores, mas também de rosas, canteiros perfumados de lavanda e florzinhas miúdas, que brotam ali em cada pedaço de terra. Mas além das flores, também chama a atenção do visitante a energia fantástica de Amsterdã, que vem das ruas cheias de gente de todas as idades pedalando suas bicicletas. Logo de manhã cedo, os pais levam seus filhos para as creches e escolas em cadeirinhas ou ‘bike trailers’, que são uma extensão das bicicletas onde os bebês vão confortavelmente protegidos do vento ou do frio. Há também quem leve até seus cães para passear nesses ‘bike trailers’.

Pois é, foram dias gostosos e culturalmente ricos em que visitamos a casa onde viveu Anne Frank fugindo da perseguição nazista aos judeus, além de belos museus com obras de Van Gogh, Rembrandt e outros mestres.

Depois de Amsterdã, voamos para Milão. Lá, de carro, iríamos conhecer lindas cidades do norte da Itália. A única cidade italiana que resolvemos revisitar foi Veneza, todo o resto seria uma novidade para nós.

Logo de cara, o azul do Lago di Como e suas pitorescas cidadezinhas nos surpreenderam pela beleza. Em Bellagio, passaríamos mais tempo. De lá faríamos passeios de barco para as pequenas cidades às suas margens.

Em Bellagio, é possível contar os inúmeros cafés à beira do lago, as sorveterias, uma juntinha da outra, oferecendo bolas de muitos sabores em seus enormes cones de ‘waffle’, mulheres com chapéus de fibra colorida nas lojinhas das ruas internas, filas de turistas para tomar embarcações que percorrem aquele lago azul… Tudo sob um céu sem nuvens e um sol morno, que conseguia suavizar o frio daqueles dias de primavera. Mas que não seria capaz de suavizar o frio do lago onde só grupos de patinhos escuros de cabeça verde se sentiam confortáveis para nadar.

Ora, se ali parecia frio, mais frio ficou ainda em Bérgamo, e depois, na região montanhosa está a cidade de Trento, nossas próximas pousadas.

Em Bérgamo, na praça principal, resplandece o enorme Duomo, mas o que mais me fascinou mesmo naquela catedral foi um diorama de páginas da Bíblia cuja perfeição era preciosa. Cada cena ocupava um pequeno compartimento do diorama, suas pequenas esculturas delicadamente pintadas. Desde a natividade de Maria até a morte de Jesus na cruz. Fotografei cuidadosamente cada ângulo e me perdi em contemplacão. Acabei ficando ali tanto tempo, que nem sei. Na saída, já na rua, vi meu marido.

-Nossa, amei o diorama que conta momentos importantes da Bíblia e da vida de Jesus. Verdadeiras narrativas pictóricas!

Ao que ele respondeu:

-Sabe que não vi!

-Que pena, mas quando chegar no hotel, se você quiser, mostro as fotos que tirei.

E me peguei pensando que assim é a vida. Cada um de nós, mesmo estando no mesmo lugar e na mesma hora que o outro, percebe o mundo à sua maneira e de forma diferente. Que loucura!

Bérgamo…depois…Trento. Ambas cidades muradas. O rico centro histórico de Trento leva o apelido de “bairro alemão” por causa da longa ocupação germânica que lá ocorreu. Por isso muitos habitantes de Trento falam italiano e alemão. Linda região, pena que tão frriiiiia!

Mas ao pé da montanha, o Lago di Garda nos esperava com uma temperatura mais amena e suas pitorescas cidadezinhas encrustradas como pequenas jóias ao longo do lago.

E, de repente, Verona bem à nossa frente. Era fim de semana e uma loucura de se acotovelava para visitar, entre outras coisas, a Arena, o Castelo San Pietro e, é claro, a Vila Romântica, onde se encontra a famosa Casa de Julieta. Feita a reserva ‘on line’ para a visita, partimos para a Vila e, naturalmente, enfrentamos uma longa fila até chegar a sacada ou ‘balcony’, que Shakespeare eternizou na peça ‘Romeo and Juliet’.

Até aqui tudo ia razoavelmente bem, quando, para entreter meu marido, que já começava a se aborrecer com a espera, comecei a conversar sobre Shakespeare e a peça. Como adoro dar aula de literaturas de língua inglesa, toda animada, desandei a falar:

-Sabe que a história de Romeo e Julieta não é real? É “uma tragédia fictícia engenhosamente imaginada”, conforme consta na própria peça.

-É mesmo? Perguntou ele espantado.

-Sim, e quer saber, esse tema de um amor proibido entre descendentes de duas famílias rivais é muito antigo. Apareceu várias vezes em peças gregas. Dizem que foi um outro escritor italiano quem primeiro usou os nomes Romeo e Julieta em um enredo semelhante.

-Quer dizer que nem é verdade, nem a família dos Capuletos morou aqui e nem foi Shakespeare quem teve a ideia da peça?

-Pois é. Antes de Shakespeare, essa história de amor foi traduzida para o francês e depois reescrita em versos em inglês.

-Então, nem a história é verdadeira e nem é de Shakespeare? Indagou meu marido, já ficando impaciente.

-Calma aí. Tem mesmo muita disputa quanto à autoria dessa tragédia, mas Shakespeare tem seu valor. Ele se inspirou em personagens e motivos da época, adaptando as histórias que ouviu para a sociedade em que viveu. E levou para o palco uma obra, que se tornou um clássico da literatura.

-É tudo mentira, então?

-Bem, eu já li que existiram, de fato, duas famílias politicamente rivais: ‘Capelletti e Montecchi’. Estão lá na ‘Divina Comédia’ de Dante. Enfim, Shakespeare usou tudo isso para escrever sua obra.

-Mas isso não é fraude?

-É e não é. Porque Shakespeare teve o seu valor de revisitar tantas obras e propor a sua.

-Revisitar? Está me parecendo mais é fraude. Quer saber de uma coisa? Eu não quero mais entrar nessa casa. Disse ele apontando para, a seus olhos, aquela malfadada casa.

-Como é? Tá ficando maluco? Uma das atrações maiores daqui e você não vai entrar?

-Que nada! Ficar o dia todo aqui nessa fila, ainda mais debaixo de chuva? Vão me cegar já já com essas pontas de guarda-chuva quase acertando no meu olho. Vá sozinha. Tô fora. Resmungou mal humorado.

-Sozinha? Mas você não entende nada mesmo. Você acha que tem graça eu entrar sozinha?

-Olha, ouvi falar que aqui bem perto tem as vinícolas daquele vinho Barolo. Que é real e autêntico. Vamos pra lá aproveitar a tarde.

-De jeito nenhum. Vamos entrar juntos. Disse com firmeza.

Olhou pra mim bem feio, emburrou e continuou na fila, resmungando de vez em quando. Enquanto isso, eu fazia cara de paisagem e dava graças a Deus que as pessoas da fila não deviam estar entendendo muito de nossa conversa. Finalmente, uma meia hora depois, chegamos ao famoso ‘balcony’ de Shakespeare.

-Vá lá que eu tiro uma foto sua. Disse ele, já mais calmo.

-Como é? Sozinha de novo? Todo casal aqui está tirando foto junto e eu vou tirar sozinha? Nem pense.

Enquanto isso, as pessoas na fila, já inquietas, começaram a nos olhar sem entender nada, mas já achando ruim a demora.

-Tá. Vamos lá tirar um ‘self’. Concordou ele tranquilamente.

Disse isso e acabou até esboçando um sorriso amarelo na foto pra me agradar. Depois, já resignado, tirou fotos minhas no ‘balcony’ e com a própria estátua de Julieta, lá embaixo, na área externa.

Mas se alguém pensa que a confusão terminou aí, está enganado. Saímos e fomos comer morangos na praça ao lado, a Praça Erbe. Foi quando me dei conta que tinha perdido o celular.

-Meu celular! Jesus! Perdi meu celular na Casa de Julieta.

-Mas essa agora? Vamos lá depressa, retrucou ele. Lá vou!

Lá voltamos novamente na Casa de Julieta para descobrir que eu havia esquecido meu celular no ‘balcony’. Achei o celular mas perdi de comer os deliciosos morangos da Praça.

E acabo usando o título de outra peça de Shakespeare: Afinal, foi ‘Muito barulho por nada’.

[1] Professora Titular do Instituto de Letras da UFBA. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP; Pós-Doutora em Literatura Comparada pela UFMG e Pós-Doutora em Mídias Digitais pela PUC-SP.

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