Organização, manutenção, e comando da Polícia Civil do Distrito Federal

Nos últimos tempos, em razão do vandalismo generalizado ocorrido nas sedes dos Três Poderes da República, tem se discutido com intensidade a chamada “federalização” das Polícias do Distrito Federal.

Organização, manutenção, e comando da Polícia Civil do Distrito Federal
Organização, manutenção, e comando da Polícia Civil do Distrito Federal

Geraldo Magela Salvador - 06/06/2023 10:09:56 | Foto: Complexo da Polícia Civil, no Distrito Federal — Vinicius de Melo/Agência Brasília

Nos últimos tempos, em razão do vandalismo generalizado ocorrido nas sedes dos Três Poderes da República, tem se discutido com intensidade a chamada “federalização” das Polícias do Distrito Federal.

Muitas opiniões, artigos, dos quais destaco o artigo escrito pelo Professor DIRCÊO TORRECILLAS RAMOS, que analisa a organização administrativa do Distrito Federal e da PCDF, de 15 de setembro de 2015, publicado no periódico do SINPOL – DF, retransmitidos nos grupos de Delegados de Polícia do Distrito Federal, que terminou discorrendo sobre a organização e manutenção das polícias do Distrito Federal em todas as Constituições Brasileiras.

Propõe-se neste ensaio discorrer sobre a interpretação da atual Constituição, no que diz respeito à condição jurídica das polícias distritais, mormente após a Carta política considerar o Distrito Federal um ente federado autônomo.

A Constituição em vigor, terminou por conferir autonomia político-administrativa ao Distrito Federal, porém o fez com ressalvas, constituídas de reservas legais exatamente no caso da organização e manutenção dos sistemas de Justiça e Segurança Pública.

E o constituinte tinha razões para isso, pois o Distrito Federal é e sempre foi uma Unidade destinada a sediar os órgãos da União e, como tal, acolhe, além das representações das outras vinte e seis unidades federadas brasileiras, centenas de representações estrangeiras, que mantêm relações políticas com o País.

Tal situação, que termina por mitigar a autonomia do Distrito Federal, se deu por meio de reservas à União quanto à organização e manutenção dos sistemas judicial e policial, expressos nos incisos XIII e XIV do art. 21 da Carta Política.

Importa observar que própria Carta Constitucional, embora tenha subtraído parte da autonomia política do Distrito Federal, houve por bem devolvê-la parcialmente, atribuindo ao ente federado a gestão e o comando das polícias, quando asseverou que Lei Federal disporá sobre a utilização das polícias pelo Governo do Distrito Federal (art. 32, § 4º), e ainda ao estabelecer que as polícias do Distrito Federal subordinam ao seu respectivo Governador, (art. 144, § 6º), regramentos que deixaram as Instituições da segurança do Distrito Federal em uma condição jurídica “sui generis”. Peço licença para transcrever os dispositivos constitucionais referidos, inclusive os revogados, para facilitar a conferência.

“Art. 21. Compete à União:

(...)

XIV - organizar e manter a polícia federal, a polícia rodoviária e a ferroviária federais, bem como a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal e dos Territórios;

(Revogado)

XIV - organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por meio de fundo próprio; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(Revogado)

XIV - organizar e manter a polícia civil, a polícia penal, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por meio de fundo próprio; dispositivo em vigor.”

“Art. 32, da CF.

(...)

§ 4º Lei federal disporá sobre a utilização, pelo Governo do Distrito Federal, da polícia civil, da polícia penal, da polícia militar e do corpo de bombeiros militar.”

“Art. 144 da CF.

(...)

§ 6º As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército subordinam-se, juntamente com as polícias civis e as polícias penais estaduais e distrital, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.”

Ocorre que, ao interpretar todo esse imbróglio jurídico, cada Poder e cada Órgão estabelece sua melhor interpretação, nem sempre no mesmo sentido. A Justiça Federal se julga competente para conhecer das causas que envolvem policiais do Distrito Federal, enquanto o Tribunal de Justiça do Distrito Federal também se julga competente. O Tribunal de Contas da União se Julga competente para julgar as contas referentes à manutenção das Polícias Distritais, enquanto o Tribunal de Contas Distrital também se julga competente. Consigna-se, por dever, que o Supremo Tribunal Federal terminou por firmar entendimento no sentido de que a competência para fiscalizar as verbas repassadas pela União é do TCU.

Nos Poderes Executivos, Federal e Distrital, embora não tenha havido conflitos até o momento, sempre ocorre certa confusão na interpretação do texto constitucional quanto à reserva feita à União para organizar e manter as polícias do Distrito Federal, conforme veremos à frente.

Observe-se que o sistema de segurança do Distrito Federal ganhou, do Constituinte originário, tratamento idêntico ao sistema judicial quanto a sua organização e manutenção, mesmo título e mesmo artigo constitucional. O sistema judicial está no inciso XIII e o policial no inciso XIV, ambos do art. 21 da Carta Política. A redação dos incisos também é idêntica, a diferença cinge-se à forma de utilização e gestão, regrada como visto, no §4º do art. 32 e no § 6º do art. 144 da Constituição, o primeiro prevê a utilização das forças pelo Governo do Distrito Federal e segundo as subordinam ao respectivo governador.

O inciso XIV do art. 21, ainda em sua redação originária, já previa a manutenção de todas as polícias federais, incluindo Polícia Federal, Rodoviária Federal, Ferroviária, e as polícias do Distrito Federal. Somente em 1998, por meio da EC nº 19/98 o Constituinte derivado criou a segunda parte do dispositivo em vigor, acrescentando a previsão de um auxílio financeiro para execução de serviços públicos por meio de fundo próprio.

Registre-se, por ser importante no contexto, que a mudança de redação, constituída do acréscimo da segunda parte do dispositivo, que prevê a criação do Fundo Constitucional, não intervém no mérito na primeira parte, deixando-a intacta no que se refere à organização e manutenção das polícias, o que conduz a conclusão clara de que o fundo então previsto só diz respeito assistência financeira criada, não intervindo na organização e manutenção das polícias distritais.

As discussões e dúvidas iniciaram quando da criação do Fundo Constitucional, que foi criado com valor fixo, destinando verba ao Distrito Federal para assistência na execução de serviços públicos e determinando o desconto do montante fixado das despesas com a manutenção dos órgãos de segurança do Distrito Federal.

A Lei, entretanto, inseriu em seu texto (art.1º e seu § 1º, da Lei 10633/2002), como o devido respeito, indevidamente, a manutenção das polícias distritais, o que parece ter ferido a primeira parte do dispositivo constitucional (inciso IV do art. 21 da CF), vez que as polícias distritais já são mantidas pela União. Como se sabe, a Lei regulamentadora não pode trazer regras que não estão no dispositivo constitucional regulado. Aliás, é até incongruente a lei federal regulamentadora criar um fundo destinado à manutenção de órgãos que já são de competência da União. Veja a letra da Lei, que peço vênia para transcrever.

Lei10.633/2002

“Art. 1o Fica instituído o Fundo Constitucional do Distrito Federal – FCDF, de natureza contábil, com a finalidade de prover os recursos necessários à organização e manutenção da polícia civil, da polícia militar e do corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como assistência financeira para execução de serviços públicos de saúde e educação, conforme disposto no inciso XIV do art. 21 da Constituição Federal.

§ 1o As dotações do FCDF para a manutenção da segurança pública e a assistência financeira para a execução de serviços públicos deverão ser discriminadas por atividades específicas.

§ 2o (VETADO)

§ 3o As folhas de pagamentos da polícia civil, da polícia militar e do corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, custeadas com recursos do Tesouro Nacional, deverão ser processadas através do sistema de administração de recursos humanos do Governo Federal, no prazo máximo de cento e oitenta dias, contado a partir da publicação desta Lei, sob pena de suspensão imediata da liberação dos recursos financeiros correspondentes.” Negritamos partes

Percebe-se claramente que a Lei extrapolou ao inserir em seu texto as polícias distritais, eis que a previsão de criação do fundo só se refere a assistência na execução de serviços públicos. A manutenção das polícias permaneceu intacta da mesma forma prevista pelo constituinte originário. Os órgãos cuja manutenção é de competência da União jamais deveriam figurar ali, ainda que, em artigos subsequentes, a própria lei determina a contabilização, desconto dos custos no montante do fundo que é fixo.

Portanto, a previsão da criação do Fundo Constitucional do Distrito Federal passa ao largo da organização e manutenção das forças de segurança do Distrito federal, lembrando, inclusive que essa manutenção antecede, em muito, a previsão de criação do Fundo.

O Fundo foi previsto em 1998 pelo poder constituinte derivado, (EC nº 19), que acrescentou a segunda parte do inciso XIV do art. 21 da Carta, quando as polícias já eram, por comando do mesmo dispositivo, mantidas pela União. Resta, portanto, claro que a segunda parte do inciso XIV, acrescido pela EC. 19/98, não interfere e nem se refere aos órgãos referidos na primeira parte do dispositivo, que já eram, por competência exclusiva, mantidos e organizados pela União.

Os recursos destinados ao pagamento dos salários da segurança distrital entram como despesa já realizada e não como verba do Fundo, vez que a própria Lei, ainda em seu artigo primeiro, determina que as folhas de pagamento dos servidores das polícias distritais sejam processadas e pagas diretamente pela União, não se tratando, portanto, de verba disponibilizada ao Distrito Federal, como ocorre com a verba assistencial prevista no dispositivo constitucional, o que, claramente retira do Distrito Federal a gestão dos recursos destinados ao pagamento de salários das polícias.

Ora, repete-se, como poderia se criar um fundo para a manutenção de Órgãos que já são de competência da União mantê-los? competência essa indelegável. A lei, nesse aspecto, com o devido respeito, desprezou e afrontou o comando constitucional por ser exclusiva. O dispositivo constitucional acrescentado (segunda parte do inciso IV do artigo 21, da Carta Política), previu a criação do fundo tão somente para a assistência nos serviços públicos, jamais para custear órgãos cuja manutenção já é de competência da União, pois, a segunda parte do dispositivo constitucional não estabeleceu relação alguma com a primeira parte.

Veja que a própria Lei cuida de determinar o processamento, pela União, das folhas de pagamento de todas as polícias distritais (art. 1º, § 3º), ou seja, a própria União processa as folhas e paga as forças de segurança, cuja despesa deve ser contabilizada no montante do Fundo, destinando o restante para a assistência aos demais serviços, estes geridos pelo Governo do Distrito Federal.

É que o Fundo Constitucional do Distrito Federal, (Lei nº 10.633/2002), foi estabelecido em um valor fixo, corrigido anualmente pelo índice da Receita Líquida da União, limite para todo dispêndio da União para com o Distrito Federal e determinado que as despesas realizadas com a manutenção da segurança pública do Distrito Federal fossem computadas, juntamente com as verbas de assistência financeira, dentro montante nele fixado.

Ocorre que, em atitude aparentemente de cortesia, ou mesmo por interesses do momento, os Governos Federal e Distrital formaram uma espécie de acordo tácito no sentido de o Governo Federal aguardar a manifestação do Executivo Distrital para tratar de qualquer assunto a respeito da organização das polícias distritais, acentuadamente no que diz respeito à fixação e reajustes das respectivas remunerações, muito embora, como visto, o dispositivo constitucional não traga essa previsão, porque a competência da União para organizar e manter as polícias distritais (art. 21, inc. IV) é exclusiva, não podendo sequer ser delegada.

Prova de que não há qualquer exigência ou obrigação de manifestação do Distrito Federal é que já houve casos em que o Executivo Distrital encaminhou proposta de revisão salarial e o Executivo Federal não acatou, outras vezes concedeu de forma diversa a seu critério.

Esse costume ou acordo tácito envolvendo o Fundo Constitucional, com o decorrer do tempo e diversificação política de lado a lado, tem se transformado em uma espécie de concorrência, estando a União, em sua condição de supervisora do Fundo, a fazer uma série de exigências quando da realização dos atos destinados à organização e reajustes das remunerações das Polícias distritais, a ponto de caracterizar verdadeira submissão do Governo distrital, o que termina por prejudicar os servidores envolvidos.

De outra sorte, o costume de tantos anos, tem afastado a ideia de que as polícias do Distrito Federal são instituições organizadas e mantidas pela União, conduzindo a ideias como a de “federalização”, como se já não fossem puramente federais, inclusive com direito de utilização e gestão pelo Governo do Distrito Federal, previsto na própria Carta Política, (art. 32, § 4º e 144, § 6º), inclusive com firmes pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, (Súmula 647 e Súmula Vinculante 39). Peço licença para transcrever as Sumulas do STF.

SÚMULA 647 – “Compete privativamente à União legislar sobre vencimentos dos membros das polícias civil e militar do Distrito Federal”.

SÚMULA VINCULANTE 39 – “Compete privativamente à União legislar sobre vencimentos dos membros das polícias civil e militar e do corpo de bombeiros militar do Distrito Federal”.

Os Policiais Civis do Distrito Federal são servidores federais, com matrícula no Sistema de Pessoal do Ministério do Planejamento, folha de pagamento elaborada pelo Executivo Federal, regime disciplinar editado pela União (Lei Federal 4.878/65), subsídios fixados por lei Federal (Lei 9.264/96), sendo atribuído ao Distrito Federal tão somente os atos de gestão e comando, conforme previsto nos dispositivos constitucionais acima citados.

Lembre-se, por oportuno, a clareza dos reiterados pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, o que fez por meio da Sumula 647 e mais recentemente da Sumula Vinculante nº 39, todos atribuindo firmemente a competência da união para legislar sobre os vencimentos dos policiais do Distrito Federal, sem a exigência de pronunciamento do Distrito Federal.

O Tribunal de Contas da União também tem tomado decisões que não deixam dúvidas sobre a condição jurídica das polícias distritais, dentre elas a que determina o ressarcimento ao Fundo Constitucional dos custos sobre a cessão dos servidores ao Distrito Federal, liberando, na mesma decisão, os custos das sessões à União, o que novamente extirpa qualquer dúvida de ser os servidores policiais do Distrito Federal puramente Federais.

Decisão do TCU de 09/06/2021, sobre o acordão 1318/21- Plenário

“Decisão do TCU redigida pelo ministro Bruno Dantas determinou que o FCDF seja ressarcido pela cessão de pessoal dos órgãos de segurança pública do DF.

(...)

As cessões de policiais civis e militares do DF, bem como de bombeiros militares, para órgãos da União, ou por ela custeados, não geram o dever de ressarcimento.

(...)

Eis então o problema, alguns Governantes, aproveitando o entendimento e aceitação em opinar nos atos de organização e reajustes das remunerações das polícias distritais, tendem a economizar nos custos com a manutenção da segurança para maximizar os recursos destinados aos demais serviços, o que tem prejudicado imensamente os servidores policiais, além de, a nosso ver, incorrer um erro formal que agride a Constituição.

Por tudo isso, é de se concluir que a manutenção das polícias distritais não depende do Fundo Constitucional do Distrito Federal. O Fundo foi previsto e criado muito após, Emenda Constitucional nº 19/98, que acrescentou a segunda parte ao inciso IV do art. 21 da CF, e criado quatro anos após, quando a segurança pública distrital já era mantida pela União desde a promulgação da Constituição em 1988. Sua previsão, repete-se, não mitigou a competência exclusiva da União para organizar e manter as forças de segurança do Distrito Federal. O acréscimo manteve intacta na primeira parte do mesmo dispositivo constitucional.

A participação do Distrito Federal nos órgãos de segurança resume na gestão e comando das forças (art. 32, § 4º e 144, § 6º da CF), como visto acima, bem como a de contabilizar os custos da manutenção, juntamente com os gastos da verba destinada a assistência financeira que recebe, no montante fixado para o Fundo (art. 2º da Lei 10.633/2002), tudo sob a supervisão do Ministério da Fazenda.

O momento é de se pensar se se mantem esta forma costumeira hibrida de organização e manutenção das polícias, que claramente viola a Constituição da República, ou de se exigir o cumprimento do arcabouço constitucional e jurisprudencial em vigor, que não prevê e nem permite a intervenção do Distrito Federal na fixação e correção dos vencimentos dos servidores policiais distritais, até porque, é consabido, não é aceitável que o ente federado opine sobre atos que criam despesas para a União.

Sugere-se, inclusive o pedido de declaração da inconstitucionalidade de partes do art. 1º e seu parágrafo 1º, Lei 10.633/2002, que fazem referências às polícias e forças de segurança distritais, partes do dispositivo legal que, com o devido respeito, violam a Constituição.

Brasília, DF, em 29 de maio de 2022

Geraldo Magela Salvador

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