Rio de Janeiro enfrenta caos após retaliação de criminosos por megaoperação contra Comando Vermelho
Flávia Vilela - Agência Sputnik Brasil - 30/10/2025 08:20:13 | Foto: © Tomaz Silva/Agencia Brasil
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, afirmou nesta quarta-feira (29) que a megaoperação das polícias civil e militar que causou ao menos 120 mortes na cidade do Rio de Janeiro foi um sucesso.
A Sputnik Brasil entrevistou especialistas em segurança pública no programa de rádio Entretanto para avaliar a conduto e atuação das autoridades, do ponto de vista técnico, nos complexos da Maré e da Penha, na capital fluminense.
Perito em criminalística e criminologia, comentarista de segurança pública, presidente do Instituto de Criminalística e Ciências Policiais da América Latina (Inscrim) e membro ativo da Associação Internacional de Polícia, José Ricardo Bandeira frisou que uma operação não é considerada exitosa quando há um número tão elevado de mortes como o registrado ontem (28).
"Nenhuma operação de segurança pública que tenha como consequência a morte de policiais e a morte de centenas de pessoas, centenas de criminosos que estejam lá, pode ser considerada bem sucedida e bem planejada. Portanto, a fala do governador [...] é completamente equivocada", opinou ele.
Segundo ele, uma operação de sucesso, além de não ter mortos nem feridos consegue apreender uma grande quantidade de drogas, armas, munições e dinheiro.
A declaração de Castro demonstra completo desprezo pelo valor da vida, na opinião da coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Carolina Grillo.
"Tanto o valor da vida dos agentes policiais que trabalham a serviço do estado quanto o valor da vida da população pobre, residente em favelas e periferias e de maioria negra, que é a mais vitimada por esse tipo de política pública centrada em operações policiais de incursão em favelas", disse a entrevistada, ao afirmar que a polícia fluminense matou mais de 20 mil pessoas nas últimas décadas.
De acordo com a especialista, o número tão elevado de mortos é "indício muito forte" de que haja ocorrido execuções sumárias e mortes de inocentes por engano enquanto corriam para tentar se esconder do tiroteio.
Ela ressaltou que esse tipo de operação é realizada há décadas em favelas, e o resultado têm sido o incremento no número de mortes, de encarceramentos, e expansão do controle territorial armado no Rio de Janeiro.
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"Houve aumento do poder das facções criminosas, ou seja, esse é um método absolutamente, comprovadamente, ineficiente no combate ao crime organizado. A própria polícia se refere tantas vezes a enxugar gelo, sim, porque prender e matar pessoas que estão ali ocupando postos absolutamente substituíveis dentro dessas organizações criminosas é algo que não surte efeito de desmantelamento nenhum das redes criminais", frisou a pesquisadora.
Segundo ela, a fação criminosa Comando Vermelho não será impactada pela ação e seguirá se expandindo nacionalmente. Ela classificou como absurda a afirmação das autoridades de que todas as pessoas mortas eram culpadas pela sua própria morte e envolvidas com tráfico de drogas:
"Não houve ainda investigação sobre boa parte desses corpos que foram abandonados pela polícia na mata, retirados pelos moradores. Não teve perícia de local, procedimentos não foram investigados, não foram tomados ainda, para que se possa fazer uma afirmação tão precipitada de que essas pessoas estavam de fato resistindo à ação policial".
A pesquisadora avaliou que a ação de ontem pode abrir novo precedente para o aumento da letalidade policial no estado, que havia caído nos últimos anos, em consequência da DPF 635, com a aproximação das eleições estaduais de 2026:
"Essa grande operação com essa megachacina, possivelmente, pode trazer retornos eleitorais para o governador, uma vez que boa parte da população que vive com medo da criminalidade acaba acreditando nessas soluções fáceis de que prender e matar possam oferecer alguma resposta para a criminalidade", disse ela.
O professor Lier Pires, PhD em direito, com pós-doutorado pela Universidade de Salamanca, integrante do Núcleo de Estudo dos Países BRICS da UFF, afirmou que o fracasso da operação é de total responsabilidade de Castro: "Uma operação como essa não pode ter uma outra alcunha que não alcunha do fracasso".
Tal estratégia, afirmou, não produz resultados efetivos que não aqueles que sejam a espetacularização do evento, invisibilizando o debate produtivo sobre a questão do crime organizado.
"Esta repressão policial, como uma operação como essa de ontem, ela não é o caminho que vai nos levar à solução do problema do crime organizado no Rio de Janeiro e no Brasil como um todo".
Pires engrossou o coro sobre colocar em prática a segurança pública articulada, sobretudo, em um contexto de nacionalização do crime organizado e enraizamento nas esferas do poder.
"O Comando Vermelho não está em São Paulo, mas rivaliza com o PCC em outras regiões do Brasil, em outros estados do Brasil, onde eles disputam várias conexões criminosas, seja o fornecimento de armas, drogas, seja por exemplo as rotas internacionais que vão levar essas drogas para os grandes mercados consumidores, que são a Europa Ocidental e os Estados Unidos".
Ele chamou a atenção para a complexidade do crime organizado no RJ, com uma pluralidade de organizações criminosas envolvendo traficantes, bicheiros e milicianos, com profundos enraizamentos no poder público.
"Estamos falando aí evidentemente do poder executivo, mas estamos falando também do poder legislativo e até mesmo do poder judiciário", comentou ao acrescentar que o recurso repressivo tem sido utilizado no Rio de Janeiro há mais de 40 anos.
Os entrevistados foram taxativos ao afirmar que o combate ao crime organizado não é eficaz sem a participação das três esferas de governo :
"Se não houver uma integração entre o governo municipal, estadual e federal, no que diz respeito ao combate à violência e à criminalidade, nós vamos perder essa disputa [...] Segurança pública é ciência, não é ideologia", disse Bandeira.
O analista ponderou que o governo federal precisa cumprir seu papel de impedir que drogas, armas e munições atravessem as fronteiras, percorram as estradas federais, portos e aeroportos e cheguem às comunidades dominadas pelo crime organizado.
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"Essa cooperação não se dá fornecendo tanques e armamento de guerra para que isso seja feito do mesmo modo ineficiente e irracional como vem sendo feito pelo governo do estado do Rio de Janeiro, e sim para que esse combate seja feito de forma inteligente, como tem feito a Polícia Federal nas suas últimas operações", disse Grillo.
Já Pires citou a importância de se aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública, que o governo federal costura no Congresso Nacional, que visa integrar melhor as diferentes forças de combate ao crime.
Ele também ressaltou que ao tratar o evento como "narcoterrorismo", o governador Cláudio Castro transforma o Rio de Janeiro em um "laboratório de guerras híbridas".
"A politização do tema da segurança pública é parte do debate, ela não vai ser superada dentro dessa polarização político-ideológica que nós vivemos no Brasil, ao contrário, essa polarização só servirá para agravar o problema da segurança pública".
Pires salientou ainda que um dos principais desafios do poder público é combater o domínio territorial de organizações criminosas, que lucram com ausência do Estado, explorando serviços ilegais de Internet, botijão de gás, transporte alternativo, locação, compra e venda de imóveis.
"Hoje, se você for aí, por exemplo, na atual Zona Sudoeste, você vai ter um ITBI [ Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis], entre aspas, da milícia, que chega a 50% das transações imobiliárias que são realizadas, por exemplo, na Gardênia e em outros bairros da Zona Sudoeste".
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