Eu tinha quase quatro anos, quando me maravilhei por uma cristaleira
Por Maria José Rocha Lima - 05/09/2024 22:11:20 | Foto: Arquivo pessoal
Certo dia eu me arrumava para ir a um show de Toquinho e Ivan Lins, em homenagem a João Gilberto, autor das músicas ouvidas, na minha infância, na casa de Hermógenes Xisto Lima, primo da minha mãe, quando parei o que fazia e me fotografei e publiquei, no Facebook, uma foto ao lado da minha cristaleira.
Conta minha mãe que eu tinha três anos ou quase quatro anos, quando me maravilhei por uma cristaleira. Ela foi visitar, pela primeira vez, um primo carnal de seu pai. Minha mãe diz que Hermógenes tinha muita vontade de nos conhecer. Chegando à casa dele, me encantei por uma afortunada cristaleira. Enquanto os adultos conversavam, eu fiquei imóvel diante da cristaleira, como que encantada, mal me movia, contavam nossas primas, filhas de Hermógenes. Dizem que primeiro eu me mirava no espelho, com um certo olhar de cobiça; depois queria, porque queria, abrir o móvel a todo o custo; e por fim me enfiei debaixo da cristaleira, como se quisesse integrá-la a mim, e lá fiquei presa. As conversas entre minha mãe e suas primas foram interrompidas, e tiveram de montar uma operação resgate para me tirar de debaixo da cristaleira. Todas tentaram cuidadosamente, sem provocar dano ao móvel e sem me acidentar. Não teve remédio, todas já estavam declarando-se vencidas quando eu esgueirei-me com a maior destreza, afastando-me cautelosamente para sair de baixo da cristaleira, numa boa. Todas aplaudiram. Naquele dia, toda a conversa na casa passou a ser em torno da “minha cristaleira” e nunca mais dela me separei. A “minha cristaleira” virou uma espécie de objeto transicional, que eu carrego vida afora. São cristaleiras para todo lado: da Bahia para Brasília, e se deixassem as levava para Angola, quando fui trabalhar na cooperação. Para minha felicidade, esses nossos familiares praticamente nos adotaram na casa da “cristaleira linda”. Naquela família, do velho Hermógenes Xisto Lima, que mais tarde foi padrinho de Sueli, minha irmã, que carinhosamente o chamava de meu Tatinho, e das suas sete filhas Georgina, Angélica, Beatriz, Regina, Dolores e Zinha. Com estas mulheres incríveis aprendemos muito: sobre beleza, sofisticação, boas maneiras e amor à educação. Por que publiquei aquela foto? Só Freud pode explicar ou um dos seus seguidores, o psicanalista inglês Donald Winnicott. Eu só sei que a minha criança, a criança que me habita mudou o estatuto ontológico da “cristaleira”, transformando – a em algo que amo, sem o qual não vivo, que abriu um novo mundo para mim!
Maria José Rocha Lima é professora, mestre em educação pela Universidade Federal da Bahia. Doutora em Psicanálise.
Deputada de 1991 a 1999.
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