Tudo é sagrado. Tudo transpira o divino que nele imergiu.
Por Vital Didonet - 30/01/2024 06:38:29 | Foto: Divulgação
“Apesar de que Deus realmente esteja presente e possa ser identificado em muitos lugares na nossa vida, falta-nos a linguagem para nomeá-lo” ( ).
Trivializamos a vida, o que somos, o que vemos, o que fazemos. como se as coisas, os sentimentos, os encontros, os acontecimentos fossem nada mais do que eles mesmos. Se vemos como Fernando Pessoa, podemos pensar desta forma. Ele tem um verso que diz: “O único sentido íntimo das cousas / é elas não terem sentido íntimo nenhum”. Em outro poema escreve: “Graças a Deus que as pedras são só pedras/ E que os rios não são senão rios/ E que as flores são apenas flores. …compreendo a Natureza por fora: E não a compreendo por dentro / Porque a Natureza não tem dentro; / Senão não era a Natureza” ( ). Um senso de realismo, uma exigência de concretude, a cruel imposição da dureza das coisas e dos acontecimentos nos “educam” para a objetividade como se eles fossem mônadas ( ) independentes e autônomas, com origem e fim em si mesmas. Gilles Deleuze, numa entrevista a Claire Parnet, no verbete Desejo, diz: “vocês nunca desejam alguém ou algo, desejam sempre um conjunto” ( ). As coisas não são apenas si mesmas e não estão desintegradas do contexto. Quando desejo uma fruta não é a fruta em si, mas o seu sabor, a sua beleza, a sua textura, tudo o que a faz ser, parecer e estar ali à minha vista. Em síntese, são as relações entre os elementos que a fazem ser desejável.
Se cremos na imanência de Deus (sendo, também, absolutamente transcendente), nada deste mundo é trivial. Tudo é sagrado. Tudo transpira o divino que nele imergiu.
. A mulher que amamenta o bebê
continua gestando a vida dele no útero social;
ao expressar afeto e olhar terno,
tece laços de pertencimento e partilha:
nada trivial.
O pedreiro que reboca a parede,
sedimenta o chão e cobre o telhado
constrói o sentido de morar
e prepara a alegria do lar:
nada trivial.
O motorista do ônibus lotado de manhã cedo
levando pessoas para o trabalho,
não é mero transportador de corpos,
faz parte da alegria do emprego
e do salário que abastece a casa:
nada trivial.
O estudante que presta atenção na aula
mergulha no desconhecido e passa a saber;
morar no conhecimento do mundo
é torna sujeito:
nada trivial;
A criança que puxa o caminhãozinho,
que veste a boneca, rabisca um desenho,
gesticula como artista, afaga o gatinho,
constrói significados, cria mundos:
ato transcendental;
A adolescente que escreve seu Diário
confidencia sentimentos e afoga dissabores
para um real amigo imaginário
que guarda segredo:
nada trivial;
O garoto que convida amigos para jogar
faz um time, empresta a bola,
tece futuros:
a amizade não é trivial.
Os vicentinos que levam cobertores
para as pessoas que moram na rua
acalentam corpos, diminuem o sofrimento:
ato transcendental;
O moribundo que balbucia a sede e a secura dos lábios
recebe o lenço úmido como bênção divina.
Nada termina em si mesmo.
Tudo sobe para o além de si mesmo
porque tudo é mais no Mais.
Sinto vontade de ajoelhar-me diante da grandeza dessas ações
porque elas têm uma dignidade muito além do simples e corriqueiro acontecer.
Não temos palavra para nomear Deus nessas ações se as trivializamos. Mesmo assim, o sagrado está nelas. O exercício de ver é como colocar óculos de grau para ler e enxergar objetos pequenininhos ou ver melhor o que está distante. Neste caso, porém, não se trata de ver longe ou captar detalhes, e sim entender (no seu sentido etimológico de in-tendere, isto é, tender, inclinar-se para dentro). “Pai, ensina-me a ver”, disse o menino deslumbrado diante do mar, onde o pai o levou ( ). O garoto estava fascinado diante de tanta beleza, que não sabia se via ou sonhava.
Pai, ensina-me a ver. Tu és o Mar, o Tudo, o Imenso que me extasia. Mas estou como que cego diante de tamanha beleza, de tão imensa maravilha. O poeta Ovidio, em Metamorfoses, cantou: “O pouco que se mostra denuncia a beleza do oculto”. Pouco vejo e mais anseio ver. Desejo incontido, mistério insondável, pontinha do iceberg, me apareces para que mais eu te deseje.
Medito com Fernando Pessoa:
“Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos” ( ).
Nada é vulgar. Se dou água para as plantas, colho amoras, enxugo a louça, lavo os banheiros, recebo as crianças na saída da pré-escola, ponho uma carta no correio, dou dez reais ao vigia do carro, escolho um livro para ler, tenho saudade de minha irmã que faleceu, abraço uma pessoa que faz aniversário, digo bom dia a pessoas que encontro na rua, estou alegre porque se cumpriu uma boa expectativa…isso que chamamos “vida cotidiana”, não são coisas vulgares. Nessas ações há uma relação individualizada, personalizada, um contexto.
Não é a falta de linguagem para nomear-te que te faz ausentar-se dessas coisas e acontecimentos, o que te faz “ausente de mim” é a trivialização da vida. Esse é o pecado. Porque desvio o olhar do centro do alvo e miro o seu exterior.
Eu disse que tudo é sagrado, mas devo fazer uma ressalva: o homem foi capaz de dessacralizar, de retirar o sentido divino que Ruah – Espírito – ( ) acrescentou aos seres e movimentos deste mundo. Esvaziado do Espírito, negada sua sacralidade, degrada-se para o vazio e abre-se o caminho para o mal, a ofensa, a violência, o crime, a tortura, o desprezo, o desespero.
Pai, ensina-me a ver. E, mais que ver, a sentir. E mais que sentir, a encontrar-te. Mesmo sem linguagem para nomear tua presença, sei que estás aqui.
*Vital Didonet é professor, bacharel e licenciado em Filosofia e em Pedagogia, mestre em Educação pela Universidade de Brasília.
Tem mais de quarenta anos de experiência em políticas públicas na área dos direitos das crianças na América Latina e, em especial, no Brasil. Tem sido convidado por Ministérios, Universidades e ONGs para proferir conferências, participar de debates, estudos e projetos de educação infantil em cerca de trinta Países.
Assessorou o autor e o relator do projeto de lei nº 6.998/2013. que resultou na Lei nº 13.257/2016, conhecida como Marco Legal da Primeira infância.
É membro fundador da Rede Nacional Primeira Infância – RNPI e foi coordenador de sua Secretaria Executiva de 2008 a 2010. Desde 2010 é assessor da Secretaria Executiva dessa Rede em matérias que tramitam no Congresso Nacional e no acompanhamento das ações do Governo nas políticas pela Primeira Infância. É membro da Rede de Líderes em Primeira Infância, da América Latina, coordenada por Horizonte Ciudadano, do Chile.
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