Por João Zisman: ‘Laranja Mecânica’ resiste como ‘Laranja madura na beira da estrada’

O apelido colou e nunca mais saiu.

Por João Zisman: ‘Laranja Mecânica’ resiste como ‘Laranja madura na beira da estrada’
Por João Zisman: ‘Laranja Mecânica’ resiste como ‘Laranja madura na beira da estrada’

Por João Zisman - 13/10/2025 10:34:21 | Foto: João Zisman - Texto e Imagem

Estou assistindo, por acaso, a um jogo das eliminatórias da Copa do Mundo entre Holanda e Finlândia. E, de repente, algo familiar me atravessa a memória: a expressão “Laranja Mecânica”. Faz décadas que ela se repete como um selo impresso na camisa da seleção holandesa, independentemente de quem jogue ou de quantos anos tenham se passado desde 1974. Penso nisso e me pergunto como certas expressões populares resistem ao tempo, se renovando a cada geração sem que precisem ser reensinadas.

A alcunha nasceu na Copa disputada na Alemanha, quando a equipe liderada por Johan Cruyff encantou o mundo com um futebol inovador e coletivo. O uniforme laranja, símbolo da Casa de Orange-Nassau, completou a imagem. Mas a denominação “Laranja Mecânica” não veio só da cor, e sim da metáfora cinematográfica. O filme de Stanley Kubrick, lançado poucos anos antes, era um fenômeno cultural. Sua estética sombria e precisa inspirava uma ideia de sincronismo quase desumano. Era como se a seleção holandesa fosse uma máquina programada para jogar futebol, fria, eficiente, espetacular. A partir dali, o apelido colou e nunca mais saiu.

Há algo de fascinante nesse tipo de permanência linguística. Vivemos uma era marcada pela efemeridade, em que expressões, memes e modismos duram um ciclo de likes. Mas algumas palavras, forjadas em contextos intensos, criam raízes que nem o algoritmo mais acelerado consegue arrancar. O segredo talvez esteja na fusão entre símbolo e sentimento. Quando uma palavra representa não apenas um fato, mas uma emoção coletiva, ela sobrevive ao tempo. “Laranja Mecânica” passou a designar não só um time, mas um conceito de jogo, um estilo de pensar o futebol. Tornou-se substantivo próprio.

Outras expressões seguiram o mesmo caminho. O “Canarinho”, da seleção brasileira, ultrapassou o pássaro e virou sinônimo de alegria, talento e improviso. A “Máquina Tricolor”, do Fluminense dos anos 70, continua sendo referência a qualquer equipe que jogue bonito. No campo político, “Diretas Já” ainda desperta lembranças de uma multidão nas ruas, mesmo entre quem nem era nascido. E, em outra esfera, “Milagre Econômico” continua sendo evocação automática sempre que o país dá algum sinal de crescimento súbito, ainda que o contexto seja outro.

Essas expressões persistem porque condensam tempo e emoção em poucas palavras. São pequenas cápsulas de memória coletiva. Cada vez que alguém as usa, reacende o significado original e, ao mesmo tempo, lhe dá um novo sentido. A ressignificação é automática, inconsciente. A “Laranja Mecânica” de hoje já não representa Cruyff, Neeskens ou Rep, mas uma herança de beleza e disciplina que o torcedor identifica mesmo sem ter visto o time original jogar.

Como jornalista, observo que a linguagem popular funciona como um mercado simbólico, sujeito à mesma lógica que regula a economia. Algumas expressões têm valor intrínseco e continuam sendo negociadas ao longo dos anos. Outras são bolhas de curto prazo, infladas por modismos e desinformação. Nas redes sociais, a volatilidade das palavras é brutal, mas, paradoxalmente, são esses mesmos meios que ajudam a perpetuar certas ideias. O que era gíria vira hashtag, o que era apelido vira identidade. A velocidade, em vez de destruir, às vezes consolida.

Há, portanto, uma espécie de mercado paralelo da linguagem, onde valor e permanência não dependem da atualidade, mas da capacidade simbólica de resistir. “Laranja Mecânica” é um desses ativos raros. Nasceu da junção entre a cultura pop e o futebol, entre o cinema e o gramado, e hoje representa um estilo, uma escola, uma memória coletiva. Quando alguém pronuncia essas duas palavras, aciona não só uma lembrança esportiva, mas uma ideia de tempo em que tudo parecia novo e coordenado, como uma engrenagem de emoções.

É curioso pensar que, num mundo em que tudo envelhece depressa, as expressões mais duradouras não foram planejadas para durar. Elas simplesmente se encaixaram na alma de uma época e ali ficaram. Talvez a diferença entre o efêmero e o eterno não esteja na tecnologia que usamos, mas na intensidade do que sentimos quando nomeamos as coisas.

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